Page 16 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (12)

Uma década de crise do Estado Português
                                               da Índia
Adiscussão sobre a existência de qual-
        quer pensamento estratégico organiza-  ca que ela provocou em todos os que tiveram     negociações entre os portugueses e represen-
        do, no século XVI, é um problema que   responsabilidades do âmbito militar. Os turcos  tantes seus, no sentido de partilharem de for-
                                               – como estamos lembrados – surgem no Índi-      ma pacífica os benefícios do acesso a Ormuz.
ultrapassaodomíniodopróprioacademismo. co em 1507, regressando em força nos anos de E,emboraaspropostasquetrocaramnãotives-
Não temos nenhum exemplo de formulação 1538 e 1546, cercando a cidade de Diu, cuja sem consequências efectivas, o ambiente desa-
deprincípiosquepossamorientarumamoda- defesa pelos portugueses foi vitoriosa. Perde- nuviou-sesubstancialmente,oquesignificava,
lidade de acção. Mas a guerra tinha uma con- ram sempre os grandes embates no mar, mas paraosportugueses,odesaparecimentodoini-
duta própria e os mais experimentados chefes conseguiram expandir-se na Península Ará- migo mais poderoso: o único que os assustou
militares tinha um pensamento que conduzia bica, alcançando o Iraque e o Golfo Pérsico, de forma intensa e omnipresente, desde 1509.
a sua acção. A presença portuguesa no Índico conforme vimos em vários artigos anteriores. QuandoSuleimanmorreu,em1566,elhesuce-
é um exemplo fascinante de como a co-                                                                         deu Selim II, desaparecia o grande guer-
roa delineou uma modalidade de acção,                                                                         reiro e consolidava-se uma convivência
que expressou num regimento dado em                                                                           pacífica que já durava há mais de uma
1505 a D. Francisco de Almeida, sucessi-                                                                      década. E isto quer dizer que se escoara
vamente adaptado às circunstâncias ao                                                                         o sentido do perigo eminente, levando
longo das décadas com um fio condu-                                                                           a que se entendesse a guerra do mar de
tor que permite entrever uma lógica. Era                                                                      forma diferente e com outros objectivos,
por demais evidente que Portugal não                                                                          entrando-se na fase que Diogo Couto
podia desenvolver uma acção militar                                                                           entende como decadente.
contra tudo e contra todos, preocupan-                                                                        Observando a situação com o olhar
do-se em criar uma teia de amizades,                                                                          do século XXI, diria que o desapare-
alianças e até cumplicidades que sus-                                                                         cimento de uma ameaça psicologica-
tentassem o tipo de domínio que pre-                                                                          mente muito forte teve consequências
tendia exercer sobre o comércio maríti-                                                                       profundas na maneira de pensar a de-
mo do Índico. E as circunstâncias foram                                                                       fesa, e isso reflectiu-se na modalidade
determinando avanços e recuos, esco-                                                                          de acção que fora uma constante das
lhas, empenhamentos mais vigorosos                                                                            décadas anteriores. É evidente a alie-
ou mais fracos, consoante os objectivos                                                                       nação dos valores estratégicos que –
e as ameaças. Ou seja, sem a enumera-                                                                         mesmo sem corresponder a princípios
ção específica de princípios estratégicos,                                                                    estabelecidos de forma metódica – ti-
a coroa sempre teve um pensamento es-                                                                         nha norteado a actividade portuguesa
tratégico que se expressou de diversas                                                                        até 1554. Não deixou de haver guer-
formas, fosse no regimento referido, fos-                                                                     ras, não deixaram de se atacar as naus
se nas cartas que se lhe seguiram, fosse                                                                      de Meca, nem de assolar os piratas do
até na forma como deu mais ou menos                                                                           Malabar, mas perdeu-se a noção da me-
importância a certas acções militares. E                                                                      dida, do equilíbrio de forças e, sobretu-
o exemplo de Diu é bem significativo                                                                          do, a atenção estratégica aos aconteci-
do raciocínio sobre como controlar as                                                                         mentos que envolviam todo o mundo
linhas de navegação a partir de posições    Selim II, o sultão sucessor de Suleiman, “o magnífico”, em 1566,  Hindustânico.
importantes, que conferiam vantagem         dando origem a uma fase menos violenta da acção turca, que des-
estratégica a quem a dominasse.             cansou os portugueses da Índia.                                     É bem verdade que o espaço conti-
                                            Quadro da autoria de Nigari.                                      nental tinha os seus próprios senhores,
  Luis Filipe Thomaz chama a atenção                                                                          que pouco tinham a ver com as linhas
para o que chamou de crise de 1565 – 1575 na Foram derrotados em 1554 por D. Fernando decomérciomarítimoqueinteressavamaPor-
HistóriadoEstadodaÍndia,realçandoaforma de Meneses, em frente de Mascate (Marinha tugal. Mas isso só era válido dentro dum con-
como esta época se espelha no discurso pessi- de D. João III (47)), e não voltaram a ameaçar texto de domínio Hindu. Quando os sultana-
mista de Diogo do Couto, divulgando a ima- com perigo a navegação portuguesa. Tinham tos do Decão se conseguem coligar e destruir
gemdeumPortugalUltramarinoadormecido passado 45 anos de guerra permanente, em o poderoso Vijayanagar, era óbvio que isso iria
etomadopelacorrupção,no“gostodacobiçae que o Império Turco se dividira por múltiplas fortalecer todos os inimigos do Estado da Ín-
na rudeza de uma austera apagada e vil triste- frentes de combate. Suleiman, o magnífico, que dia, agora unidos numa “grande liga” muito
za” – como escreveu Camões. Na verdade há reinava em Istambul desde 1520, conseguiu moralizada pelas vitórias recentes e exaltada
múltiplas razões para que a viragem dos anos penetrar no espaço europeu até às portas de para mover uma guerra santa. O Estado da Ín-
cinquentatenhaobservadoumconjuntodeal- Viena e dominar todo o Mediterrâneo ociden- dia – diz Luís F. Thomaz – “enfrentou então a
terações na postura portuguesa na Índia. Há tal, ameaçando o coração da cristandade. E conjuntura global mais desfavorável de toda
sinais de natureza económica que têm sido sa- quando se pensava nos turcos – mesmo estan- a sua história até à chegada dos Batavos.” De
lientados, mas há uma questão que me parece do em Goa ou em Cochim – pensava-se neste uma forma muito curiosa é também um mo-
nunca ter merecido a devida atenção por parte perigo ameaçador para a Europa, e uma força mento que não tem merecido grande atenção
damaioriadoshistoriadoresquesededicaram capaz de expulsar os navios portugueses do por parte da historiografia moderna.
aoestudodoséculoXVIportuguês:refiro-mea Índico. Suleiman, contudo, foi envelhecendo
um conjunto de fenómenos relacionados com e perdendo o fulgor dos seus primeiros anos.                                                 
                                                                                                              J. Semedo de Matos
a ameaça turca e o estado de tensão psicológi- Depois da derrota de 1554, chegaram a haver                                             CFR FZ

16 Setembro/outubro 2010 • Revista da aRmada
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