Page 18 - Revista da Armada
P. 18
ram-se inócuos na sua aplicação prática, mas ca, e vão marcar a Marinha durante do todo I. O PAPEL DA MARINHA NA
a forte componente do patriotismo republi- o século XX. INSTAURAÇÃO DA REPÚBLICA
cano, reflectida nos projectos coloniais, sub- Não deve ainda ser ocultado, para uma
sistiu sempre, apesar da violência das ruas e melhor compreensão desses dezasseis anos, Podem enumerar-se as cinco etapas funda-
da politização dos militares. Uma primeira a participação daArmada Portuguesa no pri- mentais na ascensão e reforço do movimento
Grande Guerra mundial, com consequências meiro conflito global. Os marinheiros por- republicano em Portugal: as comemorações do
catastróficas em vários domínios da socieda- tugueses entram em combate durante a 1ª centenário de Camões em 1880; o Ultimato de
de e da administração do Estado, decorridos República, não só entre 1916-1918, mas em 1890; a «questão dos tabacos» em 1903-1905; a
que estavam quatro anos sobre o seu nasci- vários outros teatros de operações, da Ásia à ditadura de João Franco de 1906-1907; o escân-
mento, é um acontecimento que deve igual- África. Por fim, importa não esquecer o pro- dalo dos «adiantamentos» à Casa Real, que sur-
mente ser trazido a terreiro quando se estuda tagonismo invulgar da Marinha na política ge igualmente em 1906-1907. Em todos estes
a 1ª República. interna, tendo sido a força militar que dese- acontecimentos e escândalos políticos, os repu-
No que ao campo naval diz respeito, vale quilibra a seu favor o desfecho de duas revo- blicanos viram as suas fileiras engrossar.
bem a pena contrapor a ideia de uma Ma- luções – 1910 e 1915. Se é verdade que essas
rinha politizada, anárquica e desordeira, a acções podem ser interpretadas do ponto de Em Março de 1906, no dia 21, tomava posse
uma análise rigorosa, despida de análises vista pernicioso da intervenção dos militares um governo chefiado por Hintze Ribeiro, líder
calorosas e contradições, sobre o do Partido Regenerador. Desta vez, o ”Rotati-
que realmente se passou. Uma ver-
dade parece insofismável: a Mari- vismo” dos dois partidos que se re-
nha Portuguesa, nesses anos, lutou vezavam no poder, desde a segunda
desesperadamente para ressurgir; metade do século XIX (Partido Re-
apareceram ideias, discussões in- generador e Partido Progressista de
flamadas, planos navais que na ver- José Luciano de Castro), não se fazia
dade não saíram do papel, mas que por acordos cozinhados entre ambos,
enriqueceram a discussão política mas por vontade exclusiva do rei. Pai-
e teórica, ao nível governamental, rava no ar um clima estranho. Hint-
sobre a melhor forma de elaborar ze Ribeiro enfrentava o problema da
uma estratégia nacional quanto ao adjudicação do monopólio da produ-
uso do mar e à preservação da sua ção dos tabacos, que se arrastava ha-
soberania. É, de facto, o período via dois anos, e a dolorosa questão vi-
mais rico da história contemporâ- nícola do Douro. No mês seguinte, a
nea de Portugal e da Marinha em Assalto ao cruzador “D. Carlos I” na noite de 4 de Outubro. 8 de Abril, amotinavam-se as praças
particular, no campo das filosofias e os sargentos do cruzador “D. Car-
estratégicas de utilização do poder los I”. A guarnição deste navio não
naval e da melhor forma de refor- permitia o desembarque das licenças
çar o poder marítimo e o poder do para terra, depois do arriar da bandei-
Estado no mar. Não é por caso que ra, e obrigou o oficial-de-dia a bordo,
surgem durante esses dezasseis o 2º Tenente Teixeira Marinho, a se-
anos os maiores teóricos da Insti- guir para o Arsenal num escaler, a fim
tuição. Acresce que não podemos de informar o comandante e demais
deixar de lembrar também o esfor- oficiais que os não receberia a bordo.
ço dos últimos reis da Monarquia, Repare-se que esta revolta - que tem
nomeadamente D. Luís e D.Carlos lugar quando o navio se encontrava
em prol do renascimento naval por- fundeado no Tejo - colocou de ime-
tuguês. Devotos seguidores da vida diato em causa alguns dos pressupos-
marítima portuguesa, deram o seu tos pelos quais a instituição militar se
patrocínio a fóruns de discussão rege: a disciplina, o cumprimento ze-
como o Clube Militar Naval (1866) ou Quartel de Marinheiros em Alcântara. loso das ordens e das determinações
superiores, a defesa intransigente do
Liga Naval Portuguesa (1902), à preservação na política, também será justo assinalar as ex- poder político vigente e do regime.
da tradição marítima em locais como o Mu- periências e as consequências que daí se reti- No dia 10, foi a vez do comandante se dirigir
seu de Marinha e o Aquário Vasco da Gama, raram, de forma a se procederem às reformas à guarnição enumerando as praças que deve-
apoiaram firmemente reequipamentos na- necessárias na Marinha, que são iniciadas ain- riam recolher ao Quartel de Marinheiros. Os
vais ambiciosos e promoveram campanhas da no final do regime republicano. ânimos ainda se exaltaram mais. Alguns dos
hidrográficas. O jornalista, divulgador de temas navais, revoltosos dirigiram-se de armas em punho
É legítimo concluir, que o ressurgimento Maurício de Oliveira, intuiu de forma assaz para junto da borda onde os vapores iriam re-
naval, ou vontade de o incrementar, passou invulgar o que se passou na 1ª República do colher os camaradas condenados. No dia 13
da Monarquia para a República, mas este re- ponto de vista naval. Em a “Armada Gloriosa revoltam-se as guarnições do cruzador “Vasco
gime, como não podia deixar de ser, intro- (1900-1936) ”, talvez a sua obra mais conhe- da Gama” e da canhoneira “Tejo”.
duziu o seu cunho específico. A vinda para cida, descreve apaixonadamente a época em De um momento para o outro, no espaço de
a Marinha de novas tecnologias, a investiga- que Portugal possuía cruzadores, participou uma semana, três navios de guerra tinham sido
ção científica e tecnológica em vários domí- numa guerra mundial e traçou teorias estra- dominados por marinheiros revoltosos frente à
nios (comunicações, topografia, hidrografia, tégicas brilhantes. Por detrás das suas des- capital do reino e do império. A consternação
cartografia, engenharia mecânica, electricida- crições, o publicista tentava de facto ligar era a nota dominante no seio do governo, com
de), a construção de novas infra-estruturas, essa época inusitada com o ressurgimento reuniões a decorrerem madrugada dentro. En-
a aquisição de novos meios (submersíveis e naval do chamado “Programa Magalhães tre a família Real temia-se o pior. Temia-se a re-
avião), a reorganização de todo o edifício ad- Corrêa”. Na verdade, na sombra desse am- volta generalizada. Receava-se que os torpedei-
ministrativo, tal como as formas de ensino a bicioso Programa estava a mão de um ho- ros se juntassem aos amotinados. “Estamos sobre
ministrar aos quadros superiores e às suas mem da 1ª República: Fernando Augusto um braseiro”1, terá desabafado o Presidente do
bases, nascem ou reforçam-se na 1ª Repúbli- Pereira da Silva. Ministério, Hintze Ribeiro. E não era para me-
nos. Perante a situação de descontrolo e indisci-
18 SETEMBRO/OUTUBRO 2010 • Revista da aRmada