Page 6 - Revista da Armada
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O assalto ao “Santa Maria”
O NAVIO rior do Ultramar, com vencimento de atenção internacional para as políticas
general. Nesta qualidade denunciou de Salazar e causar-lhe preocupações.
Onavio “Santa Maria”, conside- as condições de trabalho em Angola e
rado um paquete de luxo, tinha acusou um governador de corrupção A REAÇÃO
largado a 9 de janeiro de 1961 passiva, mas o Governo na Metrópole
para uma viagem até Miami, de onde ignorou ambas as acusações. Tentou, Cedo, de manhã, fui inesperada-
partiria para um cruzeiro pelas Caraí- sem sucesso, na década de 40 um cargo mente chamado ao gabinete do chefe
bas, com escala na Venezuela. Levava ministerial ou governamental e, desilu- do Estado-Maior da Armada, que me
a bordo 612 passageiros, em grande dido com o regime, conspirou com ou- confirmou o assalto ao “Santa Maria”
parte norte-americanos, e 350 tripu- tros militares oposicionistas para o seu e, não havendo navio de guerra portu-
lantes. Entre os passageiros havia 20 derrube, mas, descoberto, acabou, após guês nas proximidades, precisava de
elementos da Direcção Revolucionária julgamento polémico, por ser preso e saber o que poderia fazer para atrair a
Ibérica de Libertação, exilados políticos expulso do Exército. Em 1959, apro- ajuda dos navios das esquadras inglesa
portugueses e espanhóis, que tinham veitou uma saída para tratamento num e americana na região. Informei que só
por objetivo final derrubar Salazar Hospital para fugir e pedir refúgio na em caso de pirataria ou tráfico de escra-
e Franco. Com o navio já em Cura- embaixada da Argentina, conseguin- vos eles poderiam e deveriam atuar, no
çau, Antilhas Holandesas, embarcou do depois asilo político na Venezuela. alto mar, contra um navio estrangeiro,
clandestinamente
Henrique Galvão, O ASSALTO ideia que foi ime-
que iria coorde- diatamente apro-
nar esta operação A operação teve início na madru- veitada: o assalto
com a cumplici- gada de 22 de janeiro de 1961, com a passou a ser um
dade, à distância, ocupação da ponte do navio pelo gru- ato de pirataria,
de Humberto Del- po de opositores ao regime. Um oficial que se define como
gado, exilado no de quarto que ofereceu resistência foi um ato de violência
Brasil. Galvão e morto a tiro e um tripulante que ficou contra um navio ou
Delgado tinham- ferido foi desembarcado no porto mais os seus passageiros
-se tornado figuras próximo. Os passageiros foram tran- fora da jurisdição
populares só nos quilizados com a garantia de que o as- de um Estado e em
meios oposicionis- salto nada tinha a ver com eles e que proveito próprio
tas não afetos ao as suas vidas e os seus haveres não do assaltante, e
PCP, o que pode- corriam perigo. A viagem é que iria ser iria ser solicitada a
ria explicar situa- muito diferente da planeada. ajuda, assim quase
ções futuras. Era forçada, dos nossos
a operação “Dul- A partir da tomada da ponte, o navio aliados. O assalto
cinea”, como a ba- mudou de rumo, em direcção a África. ao “Santa Maria”
tizou Galvão, que Galvão queria atingir a ilha de Fernan- era pois considera-
se destinava a ser do Pó, no Golfo da Guiné, e a partir do pelas autorida-
a ação espetacular daí atacar Luanda, que seria o ponto des portuguesas,
da sua vida, com projecção internacio- de partida, nas suas ideias utópicas e com alguma polé-
nal do seu nome e da sua nova posição quixotescas, para o derrube das dita- mica, como uma ação em proveito pró-
antifascista. duras de Lisboa e Madrid. O plano es- prio do assaltante que consistia na “sua
tava obviamente condenado ao fracas- projeção internacional e dos seus de-
O ASSALTANTE so, mas atingiu os objetivos essenciais sígnios políticos pessoais”. E não era a
de Henrique Galvão, que era chamar a primeira vez na História Marítima que
Henrique Carlos da Malta Galvão, a designação de pirataria era distorci-
nascido no Barreiro em 1895, foi ca- da ou desvirtuada. O professor Aman,
pitão do exército, investigador natu- consultor das Nações Unidas, no seu li-
ralista, escritor e alto funcionário ul- vro “Origem e Desenvolvimento do Di-
tramarino. Como gostava de ordem e reito Internacional”, depois de elogiar
odiava a balbúrdia republicana do seu a primeira viagem de Vasco da Gama,
tempo, foi apoiante de Sidónio Pais e cita “os atos de pirataria” por ele pra-
participou na revolução de 28 de maio ticados no regresso à Índia, ao atacar a
de 1926. Fervoroso salazarista, foi co- navegação comercial que nos fazia con-
missário geral da Exposição Colonial corrência. Admira esta afirmação, por-
do Porto em 1934, participou na Co- que Vasco da Gama estava ao serviço
missão dos Centenários de 1940 (1140, de um Estado e não atuou em proveito
1640) em Guimarães e em Lisboa, foi o próprio. Também segundo o livro “In-
primeiro diretor da Emissora Nacional ternational Law”, publicado pela Aca-
e foi também governador de Huíla, em demia de Ciências da URSS, o governo
Angola, onde fez notável investigação soviético convenceu ingleses e fran-
naturalista e organizou ações de propa- ceses a considerar “atos de pirataria”
ganda do Estado Novo. A certa altura os praticados pelos navios aliados de
da sua vida, trocou a profissão de ofi- Franco que atacavam navios de carga
cial do Exército pela de inspetor supe- soviéticos com destino às forças que se
6 FEVEREIRO 2012 • REVISTA DA ARMADA opunham ao avanço do General.