Page 7 - Revista da Armada
P. 7
Difundida a ideia de que se tratava patrulha norte-americanos, habitual- dos para terra pelos rebocadores que
de pirataria, só restava aguardar as aju- mente estacionados em Espanha e na os aguardavam. Segundo o próprio
das das forças navais na região. Salazar Sardenha, tinham sido disponibiliza- Galvão, a operação estava terminada
tinha muita fé não só na força política dos a Portugal para se agruparem na e já não havia razão para a expedição
que a Guerra Fria dava a um regime an- base aérea do Sal, em Cabo Verde. Um continuar: o asilo político no Brasil es-
ticomunista mas também na ginástica almirante americano tinha, entretanto, tava garantido e o elemento surpresa
diplomática que nos conferia o Acordo informado o Chefe do Estado-Maior da desaparecera.
da Base Aérea das Lajes. As repercus- Força Aérea Portuguesa de que, embo-
sões do caso “Santa Maria” chegaram ra a Marinha norte-americana pudes- O IMPACTO
ao parlamento em Londres e o “New se seguir o “Santa Maria”, abordar o
York Times” alertou para o perigo de navio seria sempre responsabilidade Os danos causados ao Estado Novo
“vermos Portugal abandonar a NATO, portuguesa. Conhecida a informação foram significativos. As exigências fei-
levando consigo a base dos Açores”. do seu paradeiro, uma fragata portu- tas por Galvão para a autodetermina-
guesa meteu-se a caminho. ção das colónias portuguesas em África
AS AJUDAS atraíram as atenções mundiais para as
A Espanha também ofereceu ajuda, políticas coloniais de Portugal e, pela
Como se pretendia, os aliados vie- reservando aviões de transporte mili- primeira vez, o muro de silêncio que
ram ajudar a localizar o paquete de- tar para abastecer o Sal em caso de ne- Salazar tinha imposto às colónias abriu
saparecido. Dois contratorpedeiros cessidade e o cruzador “Canarias” e brechas. Ou como escreveu o “Obser-
americanos e uma fragata britânica dois contratorpedeiros estavam pron- ver” na altura: “O senhor professor
juntaram-se em busca do navio, mas tos para partir de Cádis em direção às doutor António de Oliveira Salazar,
a atitude dos respetivos governos de- Canárias. primeiro-ministro de Portugal ao longo
pressa se alterou quando tomaram dos últimos trinta e quatro anos, deve
conhecimento de um comunicado de A partir desse dia a atenção voltou- estar furioso. Portugal está nos notici-
Henrique Galvão em que ele dizia que -se para o modo como a força sedeada ários e isso é a última coisa que ele de-
a ação era “em nome do Conselho Na- na ilha do Sal deveria levar a cabo a sejaria (…)”.
cional Independente de Libertação, sua missão. Seria necessário dispor de
presidido pelo general Humberto Del- instruções precisas, já que se tratava Segundo Ribeiro de Meneses, na bio-
gado, que, dizia ele, foi eleito presiden- de assunto que não podia ficar entre- grafia política de Salazar, “é difícil afe-
te da República Portuguesa e fraudu- gue à inspiração momentânea dos in- rir o impacto do caso “Santa Maria”
lentamente destituído dos seus direitos tervenientes. em Portugal. A censura da imprensa
pelo governo de Salazar”. E, continua- desempenhou o seu papel ao filtrar a
va o comunicado, “procuramos atingir Entretanto o almirante americano informação e a indignação da Assem-
objetivos políticos de natureza mera- que chefiava a frota do Atlântico tenta- bleia Nacional foi manipulada pelo go-
mente anti-totalitária, opostos a todas va convencer Galvão a atracar para li- verno. Mesmo assim o embaixador da
as formas de governo arbitrário. Procu- bertar os reféns, sendo o Brasil a sua es- Irlanda em Lisboa acreditava que o re-
ramos o apoio dos governos de todos colha óbvia; o argumento utilizado era gime teria saído fortalecido no decur-
os povos do mundo, verdadeiramente que, não dispondo já do fator surpresa, so da crise” (fim de citação). Os fiéis ao
livres. Desembarcaremos os passagei- o jogo tinha chegado ao fim; no entan- regime chegaram a falar de uma “rea-
ros no primeiro porto neutro que ga- to, Galvão preferiu aguardar a toma ção sadia” do país contra os assaltantes
ranta a nossa segurança e do navio”. da de posse do novo presidente Jânio do “Santa Maria”, patente na multidão
(fim de citação). Quadros, que sucedia a Kubitschek de que se reuniu para saudar o transatlân-
Oliveira com quem Salazar tivera boas tico quando este regressou a Lisboa,
O comunicado influenciou a opinião relações, para atracar num porto brasi- a 16 de fevereiro. Salazar, que estava
pública mundial e pôs termo à busca. leiro e libertar então os reféns. presente para falar ao comandante e
A recém-empossada administração à tripulação, dirigiu estas breves pa-
Kennedy justificou a sua inação com A 31 de janeiro, realizou-se um en- lavras à imprensa: “Temos de novo o
o perigo para a segurança dos passa- contro que enfureceu o governo por- “Santa Maria” connosco. Obrigado,
geiros, atitude que motivou protestos tuguês: o “Santa Maria”, já ao largo do Portugueses”.
por parte de corporações, famílias dos Recife, foi alcançado por um contrator-
tripulantes, proprietário do navio e, pedeiro norte-americano, de onde o al- O correspondente do “New York Ti-
curiosamente, até do cardeal Cerejeira, mirante Allen Smith, com uma multi- mes” admitia na altura que, à medida
que pediu a Kennedy que, ao menos, dão de jornalistas, se dirigiu a Galvão que a crise se aproximava do fim, a
fizesse libertar a tripulação. a bordo do transatlântico reconhecen- maioria dos portugueses alinhava com
do aos assaltantes o estatuto de rebel- Salazar contra as críticas vindas do es-
A partir de agora vou utilizar, de uma des políticos. O presidente Américo trangeiro” e que “a nação portuguesa
forma muito aligeirada, o que escreveu Tomás considerou esta atitude ameri- ficou chocada ao perceber como é mal
o historiador Luís Ribeiro de Meneses cana “espantosa e lamentável”. A 1 de vista a ditadura de Salazar – mesmo
em 2009. fevereiro, o presidente Jânio Quadros entre os aliados de Portugal na Organi-
enviou a Galvão uma mensagem de zação do Tratado do Atlântico Norte”.
A 25 de janeiro, o “Santa Maria”, ago- boas-vindas, garantindo-lhe asilo po-
ra rebatizado “Santa Liberdade”, foi lítico e pouco depois uma delegação Julgo que o impacto se pode assim
detetado por um avião americano cuja brasileira chegou a bordo do “Santa resumir: internamente, terá, por razões
tripulação convidou Galvão a dirigir-se Maria” para negociar a entrada do pa- patrióticas, favorecido o governo de Sa-
com o navio para Porto Rico. Galvão quete no Recife. Galvão queria que os lazar; externamente, chamou a atenção
declinou, mas a partir desse momento seus homens permanecessem a bordo, para um regime ditatorial já fora de
ficou impedido de voltar a usar o fator enquanto o navio era reabastecido de tempo e isolado na descolonização.
surpresa. Nesse mesmo dia o chefe do água e combustível e se procedia a re-
Estado-Maior das Forças Armadas in- parações nos motores, e queria tam-
formou Salazar de que o navio poderia bém que o navio fosse autorizado a Comandante E. H. Serra Brandão
estar a dirigir-se para Cabo Verde e, no partir a caminho do Golfo da Guiné. A
dia seguinte, informou de que aviões 2 de fevereiro, o “Santa Maria” entrou Conferência efetuada na Sociedade de Geografia de
no Recife e os passageiros foram leva- Lisboa em 5 de dezembro de 2011.
REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 2012 7