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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (28)
A expedição de Francisco Barreto ao Monomotapa
Oreino do Monomotapa* define-se nham monogamia, jejuns e privações diversas uma forma cristã e legítima, calando as vo-
geograficamente nos limites do pla- a que não estava habituado. Abreve trecho as zes de quem no Conselho se lhe opunha, en-
nalto africano, situado entre os rios ameaças da perdição nos infernos acabariam comendou um “parecer de letrados” sobre a
Limpopo e Zambeze, limitado a leste pela por enfadá-lo e fazer o que era mais simples: justeza dessa guerra, para o que assumiu uma
cadeia montanhosa de Inyanga que o separa matar ou mandar matar o conversor. Foi isto importância fulcral a evocação do martírio de
da actual República de Moçambique.As suas que aconteceu a Gonçalo Silveira, a 16 de Mar- Gonçalo Silveira.
fronteiras naturais protegiam-nos dos vizi- ço de 1561: arrancado do catre a meio da noite, Por carta de 19 de Março de 1569, o rei no-
nhos cobiçosos e permitiram o desenvolvi- foi enforcado sem piedade e o seu corpo ati meou Francisco Barreto como “capitão-mor
mento de uma civilização milenar, de origem rado ao rio. A notícia chegou a Lisboa alguns da empresa do senhorio do Monomotapa”,
Bantu, cuja prosperidade se pressente na com um ordenado de 6000 cruzados por
grandeza das ruínas do Grande Zimbabwe, ano, pagos pela Casa da Índia. O nomeado
que se supõe ter sido a capital até ao século não era figura inexperiente nos assuntos do
XV.Asua riqueza assentou, sobretudo, na Índico – já fora governador da Índia, após
exploração mineira do subsolo, de onde a morte de D. Pedro de Mascarenhas, em
extraíam cobre, prata e ouro, que chega- 1555 – e tinha agora como missão conduzir
vam à costa através dos grandes rios, e es- um corpo expedicionário que deveria apos-
tavam na base de um comércio rico que sar-se das fontes africanas do ouro, situadas
sustentou pequenos potentados da região a muitos quilómetros do mar.
Swahili, onde acorriam os navios do Mar Da empresa, na sua globalidade, ficou
Vermelho, do Guzerate, do Indostão e do um relato feito pelo padre jesuíta Francisco
Extremo Oriente. Monclaro, que nos diz ter a armada apare-
O ouro de Sofala, que determinou a lhado em Lisboa, com uma grande nau de
construção da primeira fortaleza, em 1506 cerca de 650 tonéis, onde embarcou o capi-
(Marinha de D. Manuel (31)), foi uma ten- tão-mor, e duas outras mais pequenas, de
tação constante para os portugueses, cien- Vila do Conde, com 150 tonéis. Numa de-
tes das dificuldades em alcançar as suas las seguia como capitão Vasco Fernandes
fontes no interior do sertão africano, mas Homem, mestre de campo de um corpo
sempre à espreita da oportunidade de expedicionário com cerca de 1000 homens
controlar o ofírico reino, situado para além de armas, contando muitos fidalgos e ca-
das montanhas do interior. Quem primei- valeiros. Zarparam de Lisboa a 16 deAbril,
ro logrou alcançar os territórios do mítico depois de algumas peripécias infelizes que
Monomotapa foi António Fernandes, um fizeram abortar uma primeira tentativa de
“carpinteiro de naus degredado” que por sair a barra, e seguiram para sul, sabendo-
ali ficou nos tempos de D. Francisco deAl- -se que a nau capitânia foi obrigada a ar-
meida, adaptando-se às duras condições de ribar a S. Salvador da Baía, enquanto as
vida num território inóspito, aprendendo restantes seguiam para Moçambique. Ali
as línguas locais e entrosando-se progres- ficou cerca de seis inexplicáveis meses, pro-
sivamente com as populações, ao ponto vocando um atraso enorme, com despesas
de obter as informações necessárias para acrescidas e com as inerentes deserções de
alcançar o planalto, empreendendo duas soldados e marinheiros que, em terra, iam
viagens ao interior, entre o mês de Abril arranjando o aconchego suficiente para
de 1514 e o princípio de 1515. Os resulta- Francisco Barreto, governador da Índia, em 1555, e coman os desmotivar de tão grande aventura. Só
dos práticos desta incursão foram, porém, dante da expedição ao Monomotapa, em 1569. chegou a Moçambique em Maio de 1570,
escassos, na medida em que a concorrência Livro de S. Julião. onde encontrou Fernandes Homem, com o
comercial árabe e swahili era muito intensa e meses depois, gerando uma onda de indi seupessoalmuitoenfraquecido,fustigadopela
contava com uma experiência secular que to- gnação que clamou por vingança. O padre era malária e pela inacção. Mas este primeiro con-
lhia os portugueses. Digamos que a couraça filho do conde de Sortelha e o martírio teve, tratempo não seria o único de toda a empresa.
protectora do ouro deixava infiltrar um ele- certamente, algum impacto, mas os tempos Por iniciativa sua ou por dificuldadespróprias
mento ou outro, de vez em quando, manten- foram passando e nenhuma reacção haveria, dazonaedotempo,malacauteladaseprecavi-
do permanente a esperança lusa, mas sempre porpartedacoroa,seoutrascircunstânciasnão das, outros infelizes episódios se lhe seguirão,
de forma muito ténue. se tivessem imposto. até à morte de Francisco Barreto, em 1573, na
Foi pela via fluvial do Zambeze, por Sena Na verdade, D. Sebastião tinha intenção de povoação de Sena, à beira do rio Zambeze. A
e Tete, que o padre jesuíta Gonçalo da Silvei- mudar o espírito com que era exercida a pre- missão não iria corresponder às expectativas
ra chegou ao Monomotapa, em 1560, conver- sença portuguesa no Oriente, exaltando as vir- que D. Sebastião depositara nela, mas disso
tendo-o ao cristianismo e baptizando-o com o tudes da guerra e a abnegação, em detrimen- falarei na próxima revista.
nome de Sebastião.Acontece, contudo, que as to dos mundanos prazeres asiáticos. É disso
conversões feitas nestas condições apressadas exemplo a forma como o conde de Atouguia J. Semedo de Matos
oferecem sonhos imediatos de imortalidade e assumiu o cargo de vice-rei da Índia, e tam-
glória que, com o andar dos tempos, se con- bém o é a decisão que tomou acerca de Mo- CFR FZ
frontam com os costumes locais. O poderoso çambique, ordenando que se preparasse uma
soberano do sertão africano não se conforma- expedição para conquistar o reino do Mono- Nota
ria com as disciplinas cristãs que lhe impu- motapa. Para fundamentar a sua decisão, de * Monomotapa é uma corruptela da língua portu-
guesa do século XVI de “Muana ua tapa”, cujo signi-
ficado é o de “senhor das minas”.
22 MARÇO 2012 • REVISTA DA ARMADA