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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (33)

                                  O epílogo

Abatalha de Alcácer Quibir tem, na            re na tentativa de manter iniciativa própria,             Com meios claramente insuficientes, a ar-
        História de Portugal, o lugar da su-  fora da teia de poder dos Habsburgos. Não               mada partiu de Lisboa a 24 de Junho de 1578,
        blime tragédia a que se seguiram,     o fazer significava render-se à subalternida-           levando mais de 500 embarcações de todos
quase de imediato, sessenta anos de domí- de que recusara a quando das propostas de os tipos, desde naus e galeões a caravelas,
nio espanhol. É vulgar encará-la como um casamento vindas de Madrid, alienando a galés, urcas e outras embarcações de trans-
castigo sobrenatural sobre décadas do subli- autonomia e afirmação pessoal por que lu- porte e carga. A 26 aportaram a Lagos e a 28
me pecado da inveja e da cobiça nas relações tava desde que subiu ao trono.                           o rei entrou em Cádis onde ficou alguns dias.
com o Oriente. O próprio Camões aponta o De alguma correspondência que mante- Procurou reunir-se todo o pessoal, agregan-
motivo desta cruel punição, cansado que se ve depois da vinda de Guadalupe se deduz do um terço do Alentejo, outro do Algarve
sente de cantar a gente surda e endurecida que, à parte as promessas de Felipe II, lhe e outros pequenos contingentes que se atra-
de uma Pátria metida no gosto da cobiça e agradaram as conversas e debates com vá- saram. Partiram a 7 de Julho, em direcção a
na rudeza de uma austera, apagada e vil tris- rios fidalgos espanhóis de larga experiência África, aportando a Tânger, onde estava o
teza. E a Pátria olhou durante séculos para em guerra. O que mais o impressionou foi rei deposto, com algumas tropas que se lhe
a Batalha, sem ver nela outra                                                                         mantinham fiéis.
coisa que não seja um momento                                                                         Recorde-se que o objectivo
em que Deus olhou para a lusa                                                                         imediato era a conquista de La-
gente e, como ao povo de Israel,                                                                      rache, devendo a armada dirigir-
lhe impôs o castigo e a errância.                                                                     -se para lá, mas foi decidido que
E ao cingir as responsabilidades                                                                      se concentrasse antes em Arzila,
na loucura de D. Sebastião se                                                                         onde seria reabastecida. Acon-
consolida esta fábula nacional: a                                                                     tece contudo que, a 14 de Julho,
loucura tão irreal de um rei que                                                                      estando nesta cidade já há dois
se transforma em instrumento                                                                          dias, o rei mandou desembarcar
do celestial castigo, imolado de                                                                      o exército, com o pretexto de que
forma misteriosa para vir a ser                                                                       o reabastecimento de água esta-
o desejado redentor da penitên-                                                                       va a ser muito difícil. Difícil foi
cia. Foi a solução fácil e confor-                                                                    o desembarque de toda aquela
tável que quase todos aceitaram                                                                       gente e, sobretudo, o alojamento
ao longo dos séculos: aquela que                                                                      no espaço confinado da praça.
faz de D. Sebastião, apesar de                                                                        Como sabemos hoje, o enorme
tudo, o instrumento de um cas-                                                                        alarido internacional da expedi-
tigo de Deus. Desta forma per-      Batalha de Alcácer Quibir.                                        ção portuguesa levou a que Abd
dem importância os pequenos         Gravura de Miguel Leitão de A­ndrada, Miscelânea – Lisboa, 1629.  el-Malik, rei de Marrocos, tomas-

factos que precedem a Jornada de África e as o Duque de Alba, que o aconselhou a levar se as suas precauções, movimentando o seu
circunstâncias de um país do ocidente pe- para África pelo menos 15000 soldados re- exército para Alcácer Quibir e reforçando a
ninsular, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, crutados no estrangeiro, e desembarcar em guarnição de Larache. Conhecido tudo isto
no centro dos interesses da casa de Áustria Larache com galés de guerra, para uma ope- e sabendo que os meios para um desembar-
(Habsburgos), de que Felipe II era o supre- ração anfíbia que tomasse aquele porto. Esta que frontal eram insuficientes, o rei decidiu
mo patriarca. A batalha de Alcácer Quibir, cidade já era, aliás, o principal objectivo por- fazer o percurso por terra e ir ao encontro do
mau grado as consequências que teve para tuguês, considerando que a sua conquista ti- exército de Abd el-Malik. Hoje encontramos
Portugal, não pode ser vista ignorando este nha um valor estratégico fundamental para muitos testemunhos que afirmam tê-lo desa-
contexto nacional e internacional, onde um o domínio no espaço atlântico ocidental. O conselhado de tal propósito, mas todos eles
jovem rei se quer afirmar fora da hierarquia tio prometera-lhe 5000 homens em 50 galés foram escritos depois dos acontecimentos e
familiar dos Áustrias.                        de combate e a possibilidade de abasteci- soam como os “bem avisei que isto ia correr
Pensemos nalguns dos factos ocorridos mento em Castela, mas condicionou a ajuda mal” com que todos já nos confrontámos ao
desde o encontro de Guadalupe, na passa- a diversos imponderáveis e dissera-lhe que longo da vida. Partiu de Arzila a 28 de Julho
gem do ano de 1576 para 1577, quando o tudo deveria ser feito até Agosto desse ano com abastecimentos para oito dias de mar-
soberano português apresentou ao congé- de 1577. Por isso os preparativos foram ime- cha, avançando pelo sertão marroquino até
nere castelhano um conjunto de propostas diatos, apesar das dificuldades. Teve apoio chegar ao rio Makhazen, onde a 4 de Agosto
concretas, todas elas bem fundamentadas e, de um agente financeiro alemão para recru- se deu o confronto fatídico. Sabe-se que lutou
aparentemente, de interesse comum. Refiro, tar soldados nesse país, mas a passagem até à morte de forma obstinada e o seu corpo
sobretudo, o pedido de ajuda para uma cam- pela Flandres não lhes era fácil e a vinda foi reconhecido pelo seu moço de guarda-
panha no Norte de África, alegando o peri- demorou-se muito mais do que previa. Em -roupa. Sucedeu-lhe no trono o cardeal infan-
go turco a caminhar para ocidente ao longo Itália teve problemas semelhantes, e apenas te D. Henrique, temporário recurso a protelar
do Mediterrâneo, e a proposta de casamento o Papa Gregório XIII lhe garantiu atempa- o epílogo da dinastia de Avis e do século de
com Isabel Clara Eugénia. Felipe II mostrou- damente a bula de cruzada e um subsídio ouro português. Com este episódio termina
-se satisfeito em relação a ambas, mas diferiu eclesiástico. Tudo se atrasou e de Espanha também a Marinha de D. Sebastião.
qualquer decisão para mais tarde. D. Sebas- apenas vinham recusas, que apenas tiveram                                                               

tião, nesta circunstância, mostrou uma má o condão de aumentar a persistência de                      J. Semedo de Matos
relação com o tempo político e foi vítima da D. Sebastião, estimulada depois pela entre-                                                            CFR FZ

impaciência, que muitos atribuíram apenas ga de Arzila e pela aliança com o rei deposto N.R.
a loucura e inconsciência, mas que se inse- de Marrocos.                                              O autor não adota o novo acordo ortográfico.

16 AGOSTo 2012 • Revista da Armada
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