Page 197 - Revista da Armada
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dade pronto a actuar nela se o motor desarvorasse. - Eh, Jão! S'a crista da vaga nos caça, volta a gente ...
E a mole negra da terra apareceu lá nos confins Os outros corroboraram, o traquejo da vida rude
do horizonte, confundindo-se com ele. Aos poucos, e perigosh tentando vencer o medo. O arrais bra-
ia perdendo o tom negro, ficando castanho-cinzen- dou-lhes: J
to e depois castanho-verde. Na frente da «Rabiosa», - Ah hó, gente! Eu sei o que faço! Mais vale afrontar
a «Anabela», do mestre Zé Cabrita, algarvio imigra- o p'rigo de nos voltarmos do que irmos enfiar na
do no litoral vareiro, caminhava aos tombos na di- pedra ... Ali ninguém se safa!
recção do molhe cada vez mais visível. O leme levou a «Rabiosa» para sul, as pedras emer-
- Vão muito a norte! - berrou o João. gindo a menos de cem metros da popa.
- Qu'é, Jão? - perguntou o Aniceto, lá de baixo. - Força no motor, Niceto! - comandou o arrais.
- O ti Zé Cabrita vai muito a norte. Se continua Nova e propositada guinada para estibordo fez
assim vai bater nos calhaus fora do molhe ... o barco enfiar no cavado enorme. A proa, por
O Quim veio para junto do cunhado. Também os instantes, apontou a oeste. A «Rabiosa» ganhou dis-
outros pescadores vieram espreitar a «Anabela». tância às rochas, fugindo delas. Quando a vaga se
O barco descaíra para norte, por força do mar elevou ameaçadora, prestes a esparralhar-se sobre
e do vento. Lutava agora para aproar francamen- a frágil presa, João rodou a roda do leme toda para
te a sul, reconhecido o perigo que corria. Mas o bombordo. A proa esguia, já enfiada à montanha
mar e o vento tinham enchido. Colhiam a embar- líquida, cortou a massa imensa de fúria esverdeada.
cação pelo través, dificultavam a manobra, tolhiam Em manobras similares, sucessivas, a «Rabiosa»
os intentos dos homens. Por momentos, pareceu foi-se afastando do perigo. Por fim, girou completa-
que a «Anabela» passaria s~fa ... Mas não: tangen- mente, aguentou na amura o embate secundário .
ciou as rochas, escapou-se num arranco de animal do mar, gemeu no maltratar do cavernallle de ma-
em pânico, indo, contudo, atropelar por bombordo deira, e demandou a entrada do porto, a salvo, em-
a ponta do molhe que espigava pelo mar dentro. purrada pelas vagas amortecidas no esporão que
Estremeceu, ferida, rodopiou, e acabou por entrar a acometiam num derradeiro e frustrado furor pela
no porto quase à deriva, as águas a pejarem-lhe alheta de estibordo.
. as entranhas, dois homens rebolando-se, malfe- Um grito uníssono de alegria se sobrepôs, defini-
ridos, pelo convés em desordem. Foi varar na tivo, às lamúrias das gentes adivinhando lutos. A bor-
praia, inesperadamente tombada para estibordo, do, o Jacinto, o mais geniquento pescador da «Ra-
a companha atordo~da lamentando à porfia com as biosa», berrou na explosão da vida conservada:
mulheres e as crianças que se amontoavam na areia - Eh, arrais duma cana! - e pulava no convés,
doirada, as dores dos dois camaradas vítimas do abraçado aos companheiros, os rostos de todos
turbilhão assassino do mar em fúria. sulcados pelo líquido salgado, quente e frio, lágri-
Outrossim a «Rabiosa» descaíra sensívelmente para mas e mar.
norte, correndo os mesmos riscos da «Anabela». João, vencida a tormenta, um orgulho de lobo. do
A observação do que acontecera aos camaradas mar a estuar-Ihe nas veias, ergueu os olhos, numa
distraíra o jovem mas experiente arrais. João aper- oração muda, para o céu esplendorosamente azul
cebeu-se do risco que corriam. O vento corria à e púrpura que espreitava pelas janelas das nuvens
desfilada pela face do mar, abrutado e cego, fazendo baixas, pardacentas, aqui ~ ali tingidas também de
aumentar o perigo. O medo tomou todos os homens. púrpura, no qual trepava um Sol longínquo, indife-
Aniceto enfiou a cabeça descoberta pelo janelo, rente e calmo. Depois o seu olhar abraçou a gente
tentando inventariar a situação, uma ansiedade a que enchia o molhe e a praia. O coração bateu-lhe
dirigir-se para terra. O Quim, ao lado do arrais, mais apressadamente quando lobrigou a mulher,
afirmou: cingida aos dois filhos do casal, o rosto ainda an-
- Isto tá feio, Jão! Se continuamos assim vamos sioso rasgando-se num sorriso simples. Junto dela,
bater pela certa ... a Maria Isabel, noiva mais ou menos desprezada
- Na batemos nada, Quim! Vou guinar na cava da do Quim, mirava também a «Rabiosa» , uma expres-
vaga. É enorme. Dá tempo prá gente se safar ... são agridoce a encrespar-lhe os lábios.
- e gritou para o Aniceto. - Toma atenção ao mo- - A Mari'Zabel parece uma viúva, ó Quim!... Desde
tor, Niceto, e deixa o resto comigo. que a deixaste nunca mais deixou as roupas escuras.
O Quim murmurou mais do que disse: - Eh hó, Jão! A Mari'Zabel nunca mais há-de ves-
- Ah hó, Jão! Juro p'la alma da 'nha mãe que lá tá no tir luto... Só q'ando eu morrer ou morrer algum
Céu que se escapar desta caso co'a Mari'Zabel! ... filho nosso ...
- Na fazes mais qu'o teu dever. Sabes o que lhe Sorriam os dois homens, enquanto a «Rabiosa»
deves, na é? .. - e João concentrou todo o seu cuida- se fazia à atracação, orgulhosa de mais uma vitória
do na arriscada manobra. sobre o mar de caprichos.
Quando a embarcação guinou abertamente para
estibordo, o Quim gritou numa advertência: A. Coentro
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