Page 199 - Revista da Armada
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mente divulgada é o inventário fei- ta para iniciar uma nova conta-
to por ocasião da morte de Carlos gem, pois, é bem evidente, só por
V de França (1380), onde é referido mero acaso é que se mantinha a
que existia na pequena capela do coincidência entre o relógio e a me·
Louvre (.ln grand orlege de mer de ridiana. Os erros eram vários. Bas-
deux grans !iolles plains de sablon tava que o navio não navegasse
en un grand estuy de bois gami sobre o meridiano ou que o orificio
d'archel (latão). Este texto sugere da ampulheta tivesse alargado, o
que as ampulhetas, já naquela que acontecia com a contínua pas-
época, eram usadas a bordo. sagem da areia.
Mas havia outras razões que
o FABRICO DAS AMPULHETAS davam origem ao desacerto. Estar
• de quarto, especialmente quando
A ampulheta é constituída por havia mau tempo, não era nada
duas âmbulas de vidro, tendo a for- agradável. Apetecia mergulhar no
• ma aproximada de um cone com a beliche e que outros fossem fazer
mesma abertura do montículo de leme ou cuidar da mareação das
areia que se forma quando a deixa- velas. Com a noite escura, o res-
mos cair de um ofÜicio. Até mea- ponsável pela ampulheta, se não
dos do século XVIII os dois cones estava a ser observado, virava-a
de vidro eram fabricados isolada- antes dos 30 minutos. Comia um
mente, colocando-se entre os vér- pouco de areia, como então se di-
tices uma pequena peça metálica zia, e assim, a hora de bordo ia len-
com um orificio devidamente cali- tamente avançando. Se, por vezes,
brado para a passagem da areia. A o Sol teimosamente não aparecia
Ampulheta de J 5 segundos usada com a
ligação era feita com cabedal ou durante alguns dias seguidos, a
barquinha, da colecç§o do Museu de Mari·
com uma pinha, esse entrelaçado
nha. (Foto MM-Reinaldo Carvalho). confusão aumentava: já era meia-
feito com cabo, em que os mari- noite mas ainda não se tinha che-
nheiros são peritos. Para dar con- tratando-se de um instrumento de gado ao crepüsculo da tarde.
sistência ao conjunto e proteger os grande utilidade, deveu-se à ele· As ampulhetas de bordo diSpu-
vidros era usada uma armação em vada tecnologia exigida no seu fa- nham, muitas delas, de dispositivo
madeira ou metal. Posteriormente, brico e ao seu consequente custo. para as manter penduradas, de
as ampulhetas foram feitas numa As ampulhetas mais comuns modo a não tombarem com o ba-
só peça de vidro que dispunha de usadas nos navios eram de meia lanço do navio. E deviam ser sem-
um pequeno ofÜicio de comunica- hora - também chamadas reló- pre colocadas à sombra porque,
ção. gios - e por elas se regulava a vida aquecidas, como muítos proposi-
A areia usada nas ampulhetas a bordo. O pessoal de quarto (quar- tadamente faziam, andavam mais
podia ser branca ou vermelha, des- tos de 4 horas) era responsável por depressa.
de que fosse seca, fina e homogé- virar a ampulheta logo que a areia
nea. A areia proveniente de Vene- deixasse de correr.' Durante o
UMA SOLUÇÃO FANTASIOSA
za tinha grande reputação. No en- quarto o marinheiro responsável
tanto podia utilizar-se pó de prata, virava a ampulheta oito vezes, ao São raros os textos em lingua
cascas de ovo moidas e estanho mesmo tempo que tocava o sino: portuguesa que façam referência a
calcinado misturado com um pou- uma badalada nas meias horas, relógios de areia. Há porém um
co de chumbo, e que, reduzido a um par de badaladas na primeira manuscrito na Biblioteca da Uni-
pó, era aconselhado para meter hora, dois, três e quatro na quarta versidade de Coimbra, de 1628.
nas ampulhetas de 24 horas. Tam- hora, e assim sucessivamente. onde o seu autor, o padre-mestre
bém se usava o pó de mármore, É curioso o facto de ainda hoje, Cristóvão Bruno, apresenta várias
acerca do qual se conhece uma cu- mais de meio milénio depois dos soluções para a determinação do
riosa receita do século XIV: a ser- Descobrimentos, se usarem quar- caminho leste-oeste, pois era as-
radura que resulta do corte do tos de quatro horas. O que se per- sim que, na época, se designava a
mánnore, deve ser amassada com deu foi a designação que alguns ti- longitude. Este Cristóvão Bruno,
vinho como se fosse um pedaço de nham naquele tempo. Prima, era nascido em Itália, entrou para a
came, escorrida e depois cozida e, chamado o quarto das vinte horas Companhia de Jesus em 1601, ten-
em seguida, nove vezes posta a se- à meia-noite, modorra dameia-noi- do vindo mais tarde para Portugal.
care s6assim deverá ser utüizada. te às quatro da manhã e alva das onde foi professor de Astronomia
Os relógios de areia foram ins- quatro às oito da manhã. nos colégios de Coimbra e Santo
trumentos indispensáveis a bordo O relógio era acertado no mo- Antão, em Lisboa. O processo mais
dos navios, até ao àparecimento mento da passagem meridiana do curioso para o cálculo da longitu-
do cronómetro, inventado em 1735 Sol. Era então meio-dia. O piloto de, ioserido no referido manuscri-
pelo inglês Harrison, mas que só com o seu astrolábio calculava a la- to, utiliza uma ampulheta de longa
no século seguinte teve uso gene- titude, determinava o ponto do na- duração que se acertava à salda do
ralizado. A razão desta demora, vio e uma ampulheta estava pron- porto e que mantinha - como se
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