Page 263 - Revista da Armada
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mundos do espírito, da alma, da  poesia. A  mim  já  nada   passagens de sua prosa, que nele era poesia também. As-
         me  pertence.  Talvez  ainda,  por  enquanto,  a  lembran·   sim se fez mais profunda a tristeza desses versos:
         ça ... )t  Dois anos depois dessa carta, em 17·3-59, morreria
                                                                    Pétalas de malmequer
         António Botlo, no limiar da miséria, vflimade um atrope-
                                                                   caindo
         lamento em Copacabana. E maisde cinco anos foram pre-
         cisos  para  que,  num  rebate de consciência, trouxessem   e arrefecendo
                                                                   110 ar parado e sombrio ...
         para Portugal O corpo do poeta: chegou à Portela numa
         manhã de outono de 1965, era 29de Outubro; esó um ano   Para a antologia do mar e dos marinheiros fomos bus-
         e treze dias depois,  I J de Novembro de 1966, encontrou ,   car: aos versos de António BailO, duas de suas belas can-
         no gavetão 1952 da rua 17 do cemitério do Alto de São   ções; e  à  sua prosa cristalina, dois dos  mais  breves dos
         João, seu último definitivo descanso.               seus contos, das mais belas páginas que em Portugal se es-
            Assim  voltou  à  Lisboa  dos  bairros  de  Alfama,  da   creveram para crianças, com uma candura ingénua e sim-
         Mouraria, da Alfama, cuja vida AntÓnio Bottocantou em   ples que nos restitui, aos adultos, o deslumbramento da
         seus  versos,  e  também  em  seu  teatro  (<<Alfama»,  «Por   infância, quandoouviamos histórias, e sentíamos vontade
         Causa do Fado», «Flor do Mel,., «Nove de Abril»), e em   que não chegassem ao fim .


         De .CANÇOES.                          Vens ouvir-me dia a dia,          Ouviro more entendé-lo,
         (Livro primeiro-Adolescente)          Amim,-                            É indo Q que há de mais belo!
                                               Banallssimo, normal,
                          /9                   - Tu vens ouvir-me, porqul?       Adeus! Amanhã, pálida flor,
            Eu ontem passei o dia                                                Traz o teu vestido negro,
            ouvindoo queo mar dizia.                                             Aquele
                                               "Porquebartista,
                                               E entre os maiores te vejo!       Queddrealce
            Chorámos, rimos, cantdmas.                                           E acentua e valoriza
                                               Éeste
            Falou-medoseu destino,             O certlssimo resumo,              Teu corpo
            Doseufado_ ..                                                        Quebradiço comoa onda, _
                                               - Podia dd-lo num beijo .•
                                                                                 E envolve a tua cabeça
            Depois, para se alegrar,                                             Numfeltro negro também.
                                               Não exageres, - amor.
            Ergueu-se, e bailando, e rindo,
            Pós-se a cantar                    A vida                            Vai! Tranquiliza-te, confia!
            Um canto molhado e lindo.          t rosa come um coval.             E vem de negro vestida,
                                                                                Sim?  ___
            O seu Mlito perfuma                Não beijes a minha fronte;       - Como no primeiro dia.
            Eoseupufumefaz mal!                Distancia-te, -si bela!
            Deserto dedguas sem fim .. .       E entristeces?                   Capri, Abril de 1927.
                                               - Tenhopenadosleusolhos,
            Ó sepultura da minha raça,         Ficaram tristes, aberlos ..                 ***
            Quando me guardas a mim?.          Como quem perde o quealcança.
                                                                              De «CONTOS)t
            Ele afastou-se calado;
            Eu afastei·me mais triste,         Não arranques                  (<<Não  É Preciso Mentir»)
            MaisdtHnte, mais cansado ..       As pétalas desse cravo,
            Ao longe o Sol na agonia          Acalma-te, -slmaisfirme.                 AGUA CLARA
            De roxo aságuas tingia.           Nãovugues
                                               Logod primeira lembrança .. _    - Olha-a bem, meu filho,  e ouve a sua
            • Voz do mar, misteriosa;          E dá brilho d tua boca,        lição: a liçáo da dgua a correr! Debruça-te
            Voz doamoreda verdade!            Dá-lhe um sorriso ...           mais.' aprende o que ela te ensina, dizia-lhe
            -Óvoz moribunda e doce            Confunde-a com as estrelas.     sua mde  d  beira daquele  rio  de  [(mpidas
                                                                              dguas correntes.  Ficou a pensar, muito si·
            Da minha grandesaudade!
            Voz amarga de quem fica,          A noite é ocansaço da luz.      rio como quando alguém nos fala de mis-
            Trimula voz de quem parte ...     Alonga todos os sonhos,         térios e de coisas infinitas, embora nos seja
                                                                              imposslvel  compreender  essas  coisas  e
                                              Êmaior!,-
            Eospoetasacantar                  E osalmas ficam mais belas!     atingir esses mistérios ... - Sim, meu filho,
           Sãoecosda voz do mar!              Comoa tristeza do amor,         assim i  a vida.  A  dgua passa,  levando ds
                                              Dá-nos                          vezes consigo uma frágil folha seca a flu-
                                                                              tuar na corrente; ao passo que tudo quanto
                    ***                       Um perdão que tudo abrange. -   i pesado ou tem valor vai ao fundo e nin-
         De  «CANÇÕES,.                       Mas tu não devuamd·la ...       guém v~, O que é vazio anda sempre d su-
         (Livro Último-Dandysmo)                                              perflcie,  e  o  que  i  maciço  fica  oculto.
                                              Como um barco sobre as dguas,   Quantos nós vemos ao de cima na galhar.
                          4                   A tuil carne inda range.        da alegria do triunfo,  só porque são ocos
            Ouviromar-                        Inda não vive d merc~           e inúteis?  Milito  volume,  meu filho,  mas
            À noitinha,                       Dosecos                         pouqulssima substdncia! Afastou-se lenta-
            Dius-                             Duma lúcida saudade,            mente  e foi  colher uns ramos de  murta,
            Que i rom8ntica loucura,          -Não i carne combalida ...      Vendo-a afastar·se, o filho com precaução
            Decadlncia .demodée.-             Oiço, agora, a voz do mar,      -  precauçáo  que  apenas  consistia  em
            EafinaJ,                          Soturna, longe, dorida ...      agarrar-se bem aos verdes juncos da mar-

                                                                                                             9
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