Page 264 - Revista da Armada
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gem,  meteu  metade do  corpo esbelto  na   pelo que valemos.  E gesticulava imperio-  medo e nojo.  Bebeu,  tossiu,  e desatou  a
            água.  O movimento das águas era forte e   so,  pisando a terra  em  passos lar80s,  en-  rir.  - Esse seu riso t de troça? - De tro-
            quase o ia levando ... Valeu-lhe estar agar-  quanto a mde, que não perdera um porme-  ça?  Que disparate! - E porque vais a fu-
            rado aos altos juncos da  margem. - Afi-  nor, tristemente,  murmurava: - Não en-  gir? - Eu não fujo; estou com pressa que
            nal não valho nada! Sou como folha resse-  tendeste a lição.  Nem sempre,  meu filho,   é diferente,  senhor cabeçudo! - Tu  cha-
            quida seguindo à superflcie da  levada.  E   a lição t a mesma: a água dizia-te, somen-  mas-me cabeçudo? - Um cabeçudo boni-
            olhava em redor para ver se alguém o ou-  te, que nâosabias nadar.   to, era o que eu queria dizer. - Não és sin-
            vira,  porque uma coisa  t  julgarmos e sa-                          cera,  menina! E ficou-se,  de  mdo no ar,
            bermos que nada somos,  e outra t sentir                             contrariado, "olhá-la ... Ela deu umas três
            e ouvir que outros o saibam e digam.  -  De «cONTOSlt                voltas, e tocou-lhe, sem querer. O crocodi-
            Custa-me  a  crer,  exclamava  quase  num   (<<Amor  Com Amor Se Pagalt)   lo enefVou-se e deixou cair a m60 sobre o
            choro,  que eu não valha um pouco mais                               seu  rabinho  em  bico.  Coitadinha,  ficou
            do  que uma pobre folha seca! E voltou a   CONVÉM SER-SE CAUTELOSO   presa.  Puxou, puxou, e tanto puxou, que
            meter-se  na  água.  Tranquila,  nesse  mo-                          partiu o rabo. Andou quase quatro meses
            mento, "água parecia adormecida. A ara-  &mpre que a menina lAgartixa muito   a viver às escondidas porque enquanto o
            gem  nem se sentia.  Cauteloso,  agarraM   nervosa e mexida parava cheia  de sede à   rabo  não cresceu  nunca mais ninguém a
            aos juncos, foi ao fundo de seguida e difi-  beira do rio para beber, o crocodilo apare-  viu.  Um simples descuido o que fez!
            cilmente saiu livre da segunda experiência.   cia,  e ela,  punha-se  quieta  e  perguntava
            Contudo,  voltou  animado: - Sou  como   baixinho: - Qllem será este sujeito,  com
            bronze, dizia, tenho mérito a valer! Ainda   uma  boca  tão  feia?  Para  e/a,  graciosa  e   (.CunÇÓfi __ ediçdodo alllor, 1930.
            que ndo dlem por mim, sei agora que sou   fina, de rápidos movimentos, o crocodilo,   .COfl/OU- Ediçiioda UI/ruria
            alguém! E quanto mais somos menos dão   pesado, com a grande cabeçona, fazia-lhe   8erlrlmd)





            A Lisboa das descobertas







                   o subirmos até ao miradouro de Santa  Catarina   obra de arte autêntica e viva expressão do amor e da gene-
                   para abarcarmos a tão notável Ribeira de Lisboa,   rosidade duma rainha  ilustre e da  gente de quinhentos.
            A  acorrem-nos indeléveis lembranças da nossa  glo-  Foi ali que o povo se apinhou a ouvir, em primeira audi-
             riosa  epopeia  marítima  num  desfilar de gratas  recorda-  ção, ao nosso saudoso padre António Vieira, os sermões
            ções da nobre Lisboa de outras épocas: a antiga cidade fe-  do Bom Ladrão e do Mandato.
             nícia  confinada ao antigo castelo,  logo  a alargar-se em   E continuando a nossa romagem pelas gratas recorda-
             moldes romanos e moi riscos entre a Adiça e a Madalena,   ções do passado, encontra-se quase a nossos pés uma ca-
            e a Alcáçova e o Tejo; a ilustre cidade das sete colinas de-  deia de edifícios singelos, negros, com três andares e pe-
             fendida  pela  muralha Fernandina e enriquecida pcla ar-  quenas janelas quadradas, protegidas por gradeamento,
             quitectura manuelina. Parece-nos ainda ver o belo lençol   a olharem o mar, com  raras porias chapeadas sobre de-
             branco do casario da majestosa urbe do século XVI, alas-  graus.  Eram esses os armazéns onde as fragatas e faluas
             trando-se como que em estendal ao rés das águas do rio   descarregavam os géneros que se acumulavam em  gran-
             e, logo  acima,  um  belo terreiro dos seus 620  passos de   desdepósitos.
             comprimento  por 200  de  largura,  ladeado, a  nascente,   O porto de  Lisboa cedo conquistou a merecida fama
             pelo nobre edifício da Alfândega e pelo Terreiro, a poen-  de ser dos mais vastos, belos e seguros de Ioda a Europa.
             te e nordeste, pelos pitorescos Paço da Ribeira e Casa da   Porém,  a  sua  grandiosidade  e  magnificência  atingiu  o
             Índia, a norte,  por uma fila  de prédios a servir de belo   auge da beleza, dos contrastes, da core do movimento na
             pano de fundo ao tão concorrido Cais da Pedra.     época áurea dos Descobrimentos, pois que as suas águas,
               Era o Terreiro do Paço quinhentista, majestoso e de-  dotadas dum belo azul nacarado, se viam sempre salpica-
            safogado logradouro, o  principal  adorno da  Lisboa das   das  de  galeões,  naus,  caravelas  e  demais  embarcações
             Descobertas.                                       miúdas em suas fainas  maritimas, oferecendo um  contí-
               Logo adiante temos a visão da antiga praça, estendida   nuo espectáculo dos  mais grandiosos e atraentes que se
            entre a curiosa casa dos Bicos e a Praia e alongando-se até   desenrolaram em todo o Mundo e em todas as épocas.
             ao chafariz de el-rei onde, mesmo ao  lado, ainda se en-  Nos alvores do século XV, a margem  Norte do Tejo
            contram relíquias Henriquinas, que comportava34 alpen-  sumia-se sob os estaleiros do rei da Boa Memória, onde
             dres compridos e cobertos de telha verde quase a locarem   se fizeram grande parte dos navios destinados à conquista
             o Arsenal que ficava para os lados de Santa Apolónia.   de Ceuta.
                Era  nesta  característica  praça  lisboeta  que  se  fazia   Foi  também  na  mesma margem,  precisamente onde
             todo o mercado e ali afluíam mercadores de toda a Euro-  assenta  a ala poente do antigo Arsenal da Marinha, que
             pa para se fornecerem das especiarias de que tínhamos o   se construiu a frota do Gama num enorme movimento de
             monopólio.                                         homens e materiais.
               Entre a velha praça e o Terreiro do Paço, ainda hoje   Porém, jamais podemos esquecer a partida da  nossa
             se encontra a bela fachada da igreja d .. Conceição Velha,   esquadra rumo à conquista de Ceuta.
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