Page 9 - Revista da Armada
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a corrente,  I'inda  lá  de  baixo,  do  Golfo,   Foi a um destes molhes meio esbarron-  Era  a  "'bpera  de  Natal,  e  cada  qual
         anles de se alongar a caminho da Europa,   dados que o nal'io atracou pela manhã de   procurou o seu conchego, a família se a li-
         Iil'e:JSe querido acercar-se do litoral para o   ."inte e quatro de Dezembro, I'indo do mar   nha, ou o recanto enfumarado dum bar de
         aql/ecu e abrigar melhor das águas gilidas   aberto e azul, da África e dos trópicos.  Era   lectos baixos, com mulheres esgrollvinllQ-
         ql/e descem da Gronelândia_       um I'elho cargueiro esgalgado, de alta cha-  das e descoloridas sob a maquilhagem. a
            O  Nalal eslal'a ã poria,  e a nel'e sem   miné enfarruscada,  com grandes  remen-  beberricar  whisky  de  má  raça  e a meler
         chegar.  Ora,  um Nalal sem Ilel'e nem frio   dos 110 casco a desfazer-se em ferrugem,  e   moedas IIum jukc-box Irepidan/e de melo-
         n40 i festa riem é nada.  Não rangem trenós   a linha de flutuação muitos palmos acima   dias quelltes e ensolaradas,  de Califómias
         llOS erlCOSlas e caminhos, não se  I'êem ho-  das  olldas:  uma  dessas  ruillas  obscuras   e coqueirais que só exislem lia Sonho e 110
         mens de nel'e com um chapéu I'elho na ca-  que sillgram vagarosameme os sete mares   celulóide.  Para os homens que rastejam à
         beça e o cachimbo emre os dentes imaginá-  do mundo, coxeando em busca de fregués,   superfície do globo e da  I'ida,  de pOrtO em
         rios,  não hd ba/alhas de bolas de  ne~'e,  e   com roupas mal lavadas a enxugar pelos   porto como se pdlria lIenhllma os aceitas-
         nOl Ianques e lagos, que não gelaram, não   cordames,  e  alRuns  marujOl  esquálidos   se,  não há oulro refúgio senão esse: e 110
         pode a gente patinar de mãos dada.r, com   acO/el'elados às amuradas. a 0/110' a terra   fim,  uma cama de aluguer e I/ns braços de
         as facel  I'ermelhas,  o cabelo SOIIO,  e o ca-  eSlrallha.  Um lIa.,,;o,  em sllma. que podia   empréstimo.
         checol a eSl'ouçar ao  I'enlo; não há grilol   ler inspirado um conlO triste a Joseph COII-  O siléncio escorreu sobre os molhes e
         de júbilo e SUSIO no ar cristalino,  nem o li·   rad ou a Pierre Mac Orlan.   hangares.  raras  luzes brilha."am,  pOllcas
         nir da.r guizalhada.r~               A sua carga era pobre e variada: óleo   conseguiam ."ellcer a espessura da 111.,,00 a
              Jingle bclls, jinglc bclls,   de  palma,  cocos,  bananas  ."erdes em  co-  desfazer-.fe em chuva. Os mastros dos car-
              Jingleall the way.           meço de putrefacção, amendoim, duas dú-  gueiros atracados em feixes perdiam-se /10
         - que enche as noites eSlreladas dWII eco   zias  de fardos  de algodãO,  e  !IIII  macaco   céu cllcar."oado.  Mas  a neblina cria sem-
         de  lempos  lelldários.  Nos  rell'ados,  em   mais 011  menos domesticado.  q/le adoece-  pre.  em  1I0lta  dos  portM.  um  mamo de
         freme  das  moradias,  as árvores de  Natal   ra em  viagem e gemia III/ma  cama de  tra-  abrigo e clandeslinidade.
         lião espalham 110 all'ura fofa doch40 os re-  pos, com febre, q/leixosodain."emia.   O  capitão  desembarcou  ã  paisana,  e
         flexos silenciosos e mullicores das sua.r lu-  Também  vinha a bortlo um passagei·   foi  â S/lO  ."ida:  linha  11/15  negócios quais-
         minária.r,  a  sugerir  calor,  imimidade  e   ro, um s6, de que não reza."am os III'ros de   quer a tratar em Filadllfia.  Atrás delI! foi-
         hospilalidade. A nalureza escura e molha-  lIavegação e que não pagara a passagem.   -se o imedimo. depois alguns oficillis e pi/o·
         da,  a nél'OU e a chl4l'a, os arvoredos hirlOS   entregue ao cuidado cúmplice de dois ma·   lOS.  o ellfermeiro,  e Olé  marinheiros.  Al-
         e desnudados, ludo amortece o resplendor   rinheiros: escondido nas entrO/rhas geme-  guns  deles  leva."am  uma garrafita  dI/ma
         dal casas, e abafa os repiques dos campa-  bundas  do  calhambeque.  num  cubículo   ag/lOrdelue  intragável.  a  que  chama."am
         nários, que deOlllro modo encheriam a 1'(-  sem ar nem luz,  jlmto das  carvoeiras.  na   brandy.  com  que esperavam  lubrificar a
         Irea sonoridade da noite. Alral'és das jane-  companhia  das  rata lOnas.  Quem  era  e   boa ."onwde dos funcionários da Alfâmle-
         las  irrompem no escuro os doirados cla-  dOllde  ."inha ele? Ali,  mas são perguntas,   go,  de modo a passarem sem a apalpação
         rões da festa; lá dellfro,  há .fempre o mes-  essas, que se "do fazem nunca a 11111 destes   da ordem nem a inspecção aos embrulhos.
         mo l!/llusiasmo e a mesma gula pelos pre-  homens magros.  de rOSlO antes do tempo   Os fUl/cionários.  q//Use IOdos irlande-
         .rentes do Sallta Klaus, empilhados em lor-  ellgelhado pelos traba/llOl.  as privações e   ses,  mmidos.  bem  pagos  e  agasalhados
         no da árl'ore fulgurante de luzes, lias suas   os ventos forasteiros.  com os olhos negros   IIOS  seus  quentes  e  macios  uniformes,
         embalagens de luxo e famasia. E o I'iajante   a luzir sombriamente de  medo e descon-  Ollllll'{I/11 l'om UI1I misto tle tio e espanto 011
         solitário e sem família que passa na eSlrada   fiallça 110 fUI/do das órbitas enco~·adas. Vi·   ironia aqllf!leJ pobres marítimos magrize-
         pode  etllrel'er  com  melancolia  os  pares   ria de Marrocc..f,  ."a/lracolI/o de tantos des-  los e mal barbeados. que tiritavam dentro
         que dançam, ou os rostos saciados e felizes   gra}ados? das mIas Perfumadas? da Costa   das farpelas de gallga 011 co/im desbotado.
         em  I'olta  da  mesa bem guarnecida,  a que   d'Africa?  Ninl;uim  o  diria.  nem  que  o   com  rememlos.  raros  deles  en~'ergando
         preside llm gordo e tostado perll.  O Natal   soubesse, e ele menos (I'U lIingllém. A ile-  um jaquetão ra:oa~'elmellle coçado. ecom
         fica  doméslico e recolhido,  e perde a ale-  galidade tem as suas leis.  a slla moral e as   a gorra de malha 011 a boilla basca na cabe-
         gria pagã que ecoo de risos e apelos jUl'e/lis   SI/as  combil/es.  e o  silbrcio  é a  regra  de   ça.  Que tliacho de candonga é que eles po-
         /Ias  tJosques  e nos  vales.  Não,  um  Natal   Ollro dos pobres desle mI/mio. Quem o pu-  diam  tral/sportar?  Nenhum  trazia  com
         sem  neve,  um  Nawl que lião  seja  "brmr-  sera a bordo? Quem o malllinha e suslen-  certaa ouro, tliamanles 01/ coca .. . ACI!ila-
         cO",  mIo  é festa  nem  é  IIada:  parece  um   ta."a ali. duranle a 1I0ile.  em segre(lo, com   1'0111  a  garrafila  e  deixavam-IIos  passar:
         Thanksgiving que se atrasou 110  calendá-  os reslOs miserá."eis do ral/cho da tripula-  .. Merry Christmas!,. Depois  I'ol/{/vam ao
         rio.                              ção meioandrajosa? - Mistério, mistério!   seu  póq/ler.  ao  cachimbo  e  ao  copo  de
            Ora isto deli-se (ou melhor, começou)   A solidariedade toutra lei sagrada e1llre os   bourbon. Os mamjos sorriam.  humildes,
         em Baltimore, qlle é uma cidade algo som-  homens que vivem à margem da Ilida.   esfregOl'am  as mãos enregeladas.  e desa-
         bria,  pacata e ordeira,  embora muito me-  Tinha embarcado pela calada da 1I0ile   fWreciam 1/0 escuro. com as calças ellrodi-
         nOl trisle do que a ."isionou o nosso Poeta   nalgllm porlO desolado das Africas 01/ dos   /llOdas I/OS cal/elas,  con~'encidos de q"e ti-
         - "cidade trisle emre as cidades,  ó  Balti-  Arquipllagos,  e é  //Ido.  Algl/ém  o  /i"ha   n/wm ludibriado a I'igifãncia tio Departa-
         more!» OUlal."ez os seus sillos lenham es-  guiado em sillncio no labirimo ressonallle   //IellfO tio Tesouro. E q/u iam eles faur fia
         qllecido  a rima  do  sillistro  Never more,   do cargueiro, e ali o deixara como /Im raIO   lerra  dos dólart's.  em noile tle  Natal. com
         never more,  que ele julgou ouvi-los cla-  de pardo.  E ali,  na sombra sufocante.  ti·   tiS SIUlS rmlpas e os sells magros bolsos de
         mar, ecoaI/do o Poe.  E preciso sair do cen-  Ilha  transposlo  as  claridades  s('m  limites   embarcailiços?
         Iro,  e percorrer os subúrbios.  para se en-  do  oceano  Iropical.  para  dar enlrada  110   O passageiro linha subido, já noite fe-
         contrar  a  atmosfera própria  da  "estação   !n."emoamericano.      ellada, das enlrall/lOs da can·oeim. parll se
         festil'a ».  Qllanto  aos cais,  são soturnos,   O  " Maria  Alberla  ..  - chamemos-lhe   escol/d!.'r 1/11/110 claraboia do conv~s. sob a
         caóticos, confusos, e aqui e além ameaçam   assim, escondendo-lhe o flome I'erdadeiro   q"al /rOl'ia espaço para um homem se dei-
         r/dna  os hangares e barracões grisalhos,   e a matrícula - cumprit/as as formalida-  tar.  como IIUI1l esquife.  (Já aí linham l'ia-
         como I'elhos pardieiros ou igreja.r rústicas   des da lei,  despejou /Ia  cais (leserlO  e cill-  jado oll/ros. durante dias e Olé semanos. e
         abandolladas.  São tristes os 110rtos deca-  zemo a escassa mercadoria. Os g/úndastes   um deles,  por sil/al,  apal/hado pela tlura
         dentes, sobrellldo de noite e tias ipocas de   e cabreSlames rangeram. as roldanas guin-  illl'emia do Norte-oscordameseram es-
         crise! Mas respira.se uma poesia s//gestiva   charam 1I0S  cadernais,  os botalõs descre·   telldais de gelo! - COIII as rOllpil///Os leves
         nestes molhes de eslacarias luminosa e ne-  ."eram 110 ar baço a SilO incerta acrobacia,   em  q!le  ."inha  do  Brasil,  ficara  tolhitlo
         gra,  ollde as  marés,  cansadas e oleosas,   e os fardos,  caixotes e engradados deram   para o resto dos seus dias.) Nãocomia des-
         vim bater de manso o ritmo (la sua cançdo   el/lrada  1I00i  hangares  ."arridos  de  venta-  tle que.  manhã cedo.  /lle linham leVildo o
         de amor à terra.  Há cidade.f que parecem   Ilia.  A noite chegou cedo, e tudo recaiu fiO   café amargoso e a bllcllQ do pão; (r  fome
         ."i."er na imimidade dos dramas e segredos   silincio. Os gl/ardas e funcionáriM do cais   roía-o,  e depois do calor abafallte das cal-
         do mar; Olldeesle está sempre presente, em   foram-se quase todos embora. e o .. Maria   deiras, o frio húmido (Ia noite inteiriçou-o.
         COlI."í."io com os homens.  E nada fala /Un-  Alberta,.  sumill-se no esquecimento e lia   Ali encaixado,  OIlVill  vozes de comalldo,
         10  ao  coração do  errante solitário.  como   obscuridade.  como I/m ca."afo  cU/uado  e   risos,  passos  de  homells  que  desciam  a
         eSle apelo eterno do mar, jUllto aos cais.   lazaremo ao flllldo dI/ma es/rebaria.   prancha. os ecos de ferro do navio despe-
                                                                                                             7
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