Page 267 - Revista da Armada
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dade de desmontagem parcial dos   zes  desacordo ... )  às  numerosissí-  fácil,  a  quatro me parecia um exa-
         motores  e  de  alguns  encanamen-  mas palestras sobre os mais varia-  gero inacessível, iniciou-se sobre o
         tos,  nos  veio  proporcionar  uma  dos assuntos históricos e  técnicos   assunto um extenso diálogo, que só
         agradável e  não planeada estadia  que tivemos de fazer ao longo da  foi  interrompido  quando,  a  certa
         de  vinte e  oito dias em Lourenço  viagem.                          altura, o comandante tocou a cam-
         Marques, de que todos trouxemos       Pois  bem:  numa  ida  ao  seu  painha  para  chamar o  criado e  o
         as melhores recordações como diz  camarote  logo  à  saída  de  Porto   r.landou  dizer  ao  tenente  Diogo
         o  V ALM  Teixeira  anteriormente.   Amélia,  por causa de uma minha  Afonso,  secretário-tesoureiro  do
            Dos  factos  e  accntecimentos   palestra, a certa altura o comandan-  conselho administrativo, que vies-
         agradáveis,  muitos e  muitos mais   te  disparou-me  inesperadamente:   se  falar  com  ele.  Em  seguido.,
         há registadas na nossa lembrança:   -  ((Eu  soube que o  senhor tocou  ::;ugeriu-me que,  para ver o  efeito
         a estadia em Port Said e  o deslum-  piano, e estou a pensar nomeá-lo di-  que se obteria, pelo menos a  duas
         bramento da visita ao Cairo e a ai-  rector e  ensaiador de um órfeão a   V07es,  eu entoasse a  primeira voz,
         zeh; o  emocionante ambiente que   criar cá no navio)). Caí das nuvens ...   que ele, comandante, acompanha-
         uma comissão de recepção nos pro-  e reagi. Argumentei que o facto de   ria assobiando a segunda, visto não
         porcionou em Angoche e  Nametil,   ter tocado piano não me dava capa-  ter jeito para ento'll'.
         em que sobressaiu o extraordinário  cidade (que eu, honestamente, re-   E então o  quadro foi  o  seguin-
         improviso que o  chefe-de-curso,  o   conhecia não ter) para levar a cabo  te: o comandante, sentado à secre-
         guarda-marinha Barahona Fernan-    tal missão, além de que não tinha   tária tentando traduzir em assobio
         des, proferiu, tecendo variações ri-  ccouvido» nem voz que se tolerasse   a  segunda voz; eu, de pé a  seu la-
         qufssimas sobre o tema ccA Pátria»,   (o  que  era,  e  ainda  é,  a  pura  do,  trauteando cesol,  si,  lá,  sol. dó,
         e  que pôs toda a  gente a  chorar,   verdade).                      si...»; e o próprio comandante, para
         presa da mais sentida emoção; e a     Ao  longo  do  curioso  diálogo   obter melhor  ritmo  na interpreta-
         festa de Natal na Beira,  hóspedes   que então se travou,  apercebi-me   ção,  com invisível  batuta, batia o
         do  governador  do  Território  da  de  que,  da  sua  parte,  não  havia   compasso com a  mão no ar.
         Companhia de Moçambique, almi-     aquela firmeza, convicção e  deter-  Quando estávamos na terceira
         rante Magalhães Correia;  e  a  pas-  minação que normalmente punha  ou quarta tentativa de acerto, abre-
         sagem  do  ano  no  Polana  de  em idênticas circunstâncias, e  até  -se a porta e surge o Diogo Afonso.
         Lourenço Marques; e  a  estadia na  considerei que a  sua comunicação   Perante tão insólito e  ridículo qua-
         Cidade  do  Cabo  com  visitas  às   mais  não seria que uma sugestão  dro, a sua expressão de espanto foi
         magnificas praias vizinhas; e a pis-  ou simples balão-de-ensaio, e como   indescritivel, e ainda recordo, como
         cina do Lobito e  as praias da Ilha   tal a  tomei.                  se fosse hoje, vê-lo, com as mãos na
         de Luanda; e  a  emocionante subi-    Até  Cabo  Verde,  de  vez  em  barriga, disparado pelo convés fo-
         da  do  Zaire  até  Nóqui,  e  etc.,  e   quando,  o  comandante abordava-  ra a rir a  bandeiras despregadas ...
         etc ....  Um  nunca acabar de belas   -me sobre o tema ceórfeão»,  mas ca-  Pouco depois,  um  pouco  mais
         recordações ...                    da vez com menos ênfase e acabei  sereno mas ainda fazendo inúteis
             É evidente que o saldo entre os   por  reconhecer  que,  perante  a   esforços para conter o riso, voltou
         bons e os maus bocados foi franca-  minha  inoperância,  a  sua  ideia  à  camarinha e  logo o comandante
         mente  favorável  aos  primeiros,  e   musical se ia a  pouco e  pouco es-  o  interpelou:  -  ciDiogo  Afonso,  é
         pode afirmar-se que todos nós guar-  batendo.  E  assim foi,  pelo menos   preciso comprar um piano  para o
         damos na nossa lembrança, ainda  comigo.                             órfeão  do navio)).  O  imprevisto da
         hoje (e já lá vão mais de 53  anosl)   Mas o episódio engraçado que   ideia provocou em nós dois, que já
         um lugar muito especial para esta  quero contar e que tanto me diver-  estávamos sob pressão. uma explo-
         viagem, para este navio e para esta  tiu  passou-se  em  Lourenço  Mar-  são incontrolável de riso, que con-
         guarnição.                         ques,  uns  vinte  dias  depOis  da  tagiou  o  comandante.  E  assim,
             Das inúmeras histórias que uma   primeira  abordagem  do  tema,  entre  os  três  a  rir  à  gargalhada,
         comissão  desta  natureza  permite  quando havia ainda a  hipótese de   morreu a ideia do piano e  da ccPor-
         contar,  ocorre-me  de  momento    que a  ideia fosse  por diante.   tuguesa)) ...  a  qualquer número de
          uma, de que fui interveniente direc-  Chamado  à  camarinha,  o  co-  vozes ... Pelo menos, assim o supus.
         to, que muito me divertiu, e a que   mandante desdobrou sobre a secre-  Chegados a Lisboa, os guardas-
         poderei chamar a  cchistória  do  ór-  tária um texto musical e  disse-me:   -marinhas  foram  destacados  para
         feão  que  não  foin.  Vou  contá-la.   -  ceEstive em casa do engenheiro  vários navios, cabendo-me em sor-
             O comandante convocava habi-   Pinto Teixeira,  director  provincial  te o velho rebocador cILidadof)),  na
         tualmente para a sua camarinha os   de estradas, portos e caminhos-de-  fiscalização  da pesca  no  Algarve.
         guardas-marinhas, umas vezes em  -ferro e vi lá isto (8 apontou para o   Ali me chegou, tempos depois,
         grupo,  outras  individualmente,   papel de música);  eu insisti muito  a  noticia de que o comandante do
          para lhes transmitir directivas, dou-  e ele deu-mo». E, com evidente en-  ilJoão de Lisboa)) havia requisitado
         trinação pedagógica, por vezes ad-  tusiasmo,  acrescentou: -  (cTemos   para bordo, em diligência, um sar-
          moestações  (frequentes ... ),  ou  aqui o Hino Nacional, cIA Portugue-  gento músico da Banda da Armada
          simplesmente para apreciar e criti-  sa», transcrito para canto a quatro  (suponho  que  o  subchefe)  e  que,
          car os nossos relatórios de adjuntos   vozes 1 Isto vai servir para o órfeão)).   numa visita ao navio, do almirante
          dos vários serviços de bordo e  dar   Tendo eu dado a minha opinião  Major-General da Armada, este foi  •
          o seu prévio acordo (e quantas ve  de que, se a  uma voz já não seria  levado à  coberta das praças, onde
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