Page 235 - Revista da Armada

Taça América
Taça América

1ª Parte

O orgulho frustrado

o ano de 1851 vai realizar- “Diz-me, mestre de sinais, se os
-se em Londres uma grande iates já estão à vista?
Nexposição universal. Entre Sim, Majestade.
os festejos ligados a este aconteci- Qual é o primeiro?
mento, o Royal Yacht Squadron O America.
encarrega-se de organizar uma E o segundo?
regata à volta da ilha de Wight. Ah, responde, tristemente, o velho
O vencedor receberá não só o marinheiro, não há segundo!”
prémio de 100 guinéus como a taça E até parece verdade. De facto, o
da Rainha. O fabrico desta peça de Aurora é o único iate perdente cujo
joalharia é encomendado a dois nome não se encontra gravado no
franceses, de apelido Gérard, que troféu que começou por ser a Taça
vivem em Londres. A bela taça de da Rainha.
prata tem 68 cm de altura. Todavia, Esta derrota abalou os ingleses
possui uma particularidade curio- pouco habituados a perder no mar
sa: apesar de ter a elegante forma que dominavam. O assunto subiu
de uma ânfora, não tem fundo. mesmo ao Parlamento. E, na sessão
Não tem fundo porquê? da Câmara dos Comuns do dia 22
A mitologia fala-nos das Danai- de Março de 1852, o coronel Peel
des, cinquenta irmãs que, à excep- afirmou:”A vitória do America é
ção de uma, assassinaram os mari- uma verdadeira humilhação na-
dos na noite de núpcias. Uma vez cional”. E, continuou dizendo que
no Inferno, foram condenadas a era necessário trabalhar para recon-
encher um tonel sem fundo. Teria quistar, custasse o que custasse, os
sido esta história que inspirou louros então perdidos. Na realidade,
aqueles artistas ou foi, simplesmen- um século e meio depois, tal pro-
te, pura premonição? pósito ainda não tinha sido con-
Vamos recuar alguns meses. Em seguido.
Novembro de 1850, o comodoro O America, que ainda experimen-
Stevens do New York Yacht Club, tou outras vitórias, regressou ao
encomenda ao arquitecto George país de origem, mudou várias vezes
Steers um veleiro por 30 000 dó- de proprietário, esteve envolvido na
lares, mas o contrato inclui uma guerra da Secessão, foi tomado pe-
cláusula pouco comum: aquela los Nortistas, participou em nume-
importância só será paga se a rosas operações onde chegou a
embarcação se mostrar como a capturar navios ingleses, até que,
mais rápida de todas as outras das em 1863, foi entregue à Academia
suas dimensões. Assim nasce o Esta taça de prata, aberta nas duas extremidades, é a versão contemporânea Naval dos Estados Unidos, que o
palhabote America. Tem 30.63 me- do tonel das Danaides. Depois de 125 anos ela engoliu as fortunas e os revendeu dez anos mais tarde. Par-
tros de fora a fora, 6,85 metros de sonhos de todos aqueles que lutaram para a reconquistar. ticipa em regatas e acaba por voltar
boca e o deslocamento de 153 tone- à Academia Naval, após a I Guerra
ladas. A superfície vélica atinge 450 me- lhabotes ingleses. A disputa faz-se a 13 Mundial. Em 1942, devido a uma tem-
tros quadrados. de Agosto e o America é o primeiro a che- pestade, o teto do hangar que o abrigava
Os ensaios para avaliar as qualidades gar. Bom augúrio. cai, destruindo a embarcação. Os restos
náuticas do America são pouco conclu- A regata em que ia disputar-se a Taça arderam, perdendo-se, assim, triste-
dentes porque a embarcação, numa das da Rainha, estava marcada para o dia 22 mente, uma preciosidade. Mais tarde
primeiras saídas, parte o mastro da de Agosto. O America é, novamente, úni- constrói-se uma réplica. Episódio que
mezena. E, como o tempo urge, pois o co entre 18 barcos ingleses. Às 10 horas é nos faz lembrar a nossa D. Fernando II e
clube quer que o iate participe na volta à dado o sinal de largada. Às 20 horas e 58 Glória.
ilha de Wight, lá vai ele, a 20 de Junho, minutos, terminada a volta à ilha de Todavia, se o navio se perdeu, o mes-
acompanhado pelo Mary Taylor, um Wight, um tiro de canhão anunciava a mo não aconteceu com a Taça por ele
barco piloto a vapor, cujo desenho é do vitória do America. A primeira embar- ganha e que, em 1857, foi oferecida ao
mesmo Steers. O America chega a Ingla- cação britânica, a Aurora, só passou a New York Yacht Club que, neste mesmo
terra no dia 31 de Julho e logo, uns dias linha de chegada 21 minutos depois. ano, lançou um repto para a realização
depois, o comodoro Stevens desafia o A bordo do iate Victory and Albert, de uma regata internacional. Mas o
Royal Yacht Squadron, propondo-se cor- ficou célebre um diálogo entre a Rainha e desafio só teve efeito em 1870. Nesta re-
rer contra qualquer número de pa- o mestre de sinais: gata, aberta a iates de 30 a 300 toneladas, ✎
REVISTA DA ARMADA • JULHO 2000 17