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A MARINHA DE D. MANUEL (5)
A derrota do Atlântico Sul
A derrota do Atlântico Sul
derrota de Vasco da Gama no quer veleiro que queira demandar o Cabo
Atlântico Sul, na sua primeira via- da Boa Esperança. Esta hipótese de Gago
Agem à Índia, tem sido uma questão Coutinho tem – quanto a mim – um argu-
debatida pelos historiadores desde há longa mento incontestável nas instruções para a
data e nunca conseguiu obter uma unanimi- viagem dadas por Vasco da Gama a Pedro
dade absoluta. E é interessante apresentar Álvares Cabral, antes da viagem de 1500. Aí
esta discussão, mostrando qual a argumen- o Capitão-mor diz claramente ao seu suces-
tação de parte a parte, para mostrar como é sor: “farão seu caminho direito a ylha de
que se faz História e como é que os assuntos Samtiago e se o ao tempo que hy chegarem
têm de ser colocados e analisados, de forma a teverem agoa em abastanca para quatro
obter uma versão aceitável de acontecimen- meses nam devem pousar na dita ylha nem
tos que não ficaram devidamente documen- fazer nehuuma demora, soomente em
tados ou sobre os quais subsistem dúvidas. quanto lhe o tempo servir a popa fazerem
O documento que permitiu um melhor seu caminho pelo sul e se ouverem de guy-
estudo sobre a primeira viagem à Índia é – nar seja para sobre a banda do sudoeste, e
como foi dito noutra ocasião – um Relato tanto que neles der o vento escasso devem
não assinado que se supôs ser de um certo hyr na volta do mar ate meterem o cabo de
Álvaro Velho, eventualmente, do Barreiro. bõoa esperança em leste franco”. Não creio
Esse relator foi um dos acompanhantes de que possam subsistir quaisquer dúvidas
Vasco da Gama, mas não fornece grandes sobre os conhecimentos que Vasco da Gama
indicações sobre este enigma que é a traves- tinha para a travessia do Atlântico sul e se o
sia entre Santiago (de onde partiram a 3 de sabia em Março de 1500 – poucos meses
Agosto) e a baía de Santa Helena, onde depois de ter chegado a Lisboa – também o
entraram a 8 de Novembro (avistaram terra saberia em 1497. É claro que haverá sempre
a 4 de Novembro). Uma viagem de noventa quem possa duvidar, mas, hoje em dia, esta O Almirante Gago Coutinho
e três dias que, a manter-se uma velocidade é a hipótese mais coerente com os relatos e “pesando” o sol com um astrolábio
de (mais ou menos) quatro nós daria para com as condições físicas em presença. durante um estudo sobre técnicas
fazer 8924 milhas. Mesmo contando com Mas a solução de Gago Coutinho levanta de navegação nos séculos XV e XVI.
uns dias de calmaria para atravessar as cal- outro problema: há um caminho de aproxi-
mas (doldrums) equatoriais é bastante mais mação da costa africana e depois uma
do que qualquer viagem em linha recta de mudança de bordo seguindo na volta do Item depois que em bõoa
Cabo Verde ao Cabo da Boa Esperança. É mar. Quer dizer, há uma ideia clara de ora daqui partirem faram seu
claro que não se sabe nada de calmarias, de Vasco da Gama em demandar barlavento
vendavais, de maiores ou menores veloci- antes de encetar essa volta. Porque teria feito caminho direito a ylha de
dades, mas os navios parados por longos isso?… A verdade é que se não o fizesse, santiago e se ao tempo que hy
tempos ou com singraduras muito peque- não conseguiria passar safo pela ponta chegarem teuerem agoa em
nas seria uma coisa suficientemente nordeste do Brasil e acontecer-lhe-ia o
dramática para ficar registada no Relato, sucedeu depois a muitos outros mari- abastanca pera quatro meses
porque seria sentida com grande angústia nheiros: ficarem ensacados no noroeste e nam deuem pousar na dita
por todos os tripulantes. Todavia isto é um terem de regressar a Portugal, por não ylha nem fazer nehuuma
argumento vago, de pouca certeza, se não encontram maneira de ultrapassar o Cabo
fosse corroborado por outros sinais mais de São Roque em tempo útil. E este por- demora soomente em quanto
esclarecedores. menor complica ainda mais a situação, o tenpo seruyr a popa fazerem
Gago Coutinho estudou este assunto e porque torna o caminho ainda mais enviesa- seu caminho pelo sul
concluiu o seguinte: se o Relato diz que do e surpreendente. Será que este regime de
saíram de Santiago “em leste” - quer dizer ventos era conhecido dos portugueses, ape- e se ouuerem de guynar seja
saíram em direcção à costa africana – e mais sar de não termos notícias de qualquer sobre ha banda do sudueste
à frente que iam “na volta do mar ao sul e a viagem que os possa ter estudado?… É e tanto que neles deer o vento
quarta do sudoeste” – com o seu vasto co- quase certo que sim. E será que se sabia
nhecimento dos ventos do Atlântico Sul - também que era preciso ganhar barlavento escasso deuem hyr na volta
concluiu que foram tomar barlavento à para passar uma ponta de terra a Oci- do mar ate meterem o cabo
costa da Guiné e viraram de bordo, para a dente?… É mais complexo supor uma coisa de bõoa esperança em leste
tal volta do mar que os levou a contornar os assim porque existem outros argumentos
alísios de Sueste até chegarem a uma zona que não estão de acordo com uma hipótese franco e dy em diante
de ventos variáveis e aos gerais do Oeste. destas, mas é, sem sombra de dúvida, uma nauegarem segundo lhe serujr
Quer dizer, Vasco da Gama fez exactamente questão fascinante que aguarda mais estu- o tenpo e mais ganharem…
o que fez Cabral (sem chegar ao Brasil), dos e melhores explicações.
dando uma volta larga pelo ocidente, como
aconselham os roteiros náuticos de poucos J. Semedo de Matos
anos depois e como ainda hoje faria qual- CTEN FZ
16 JULHO 2000 • REVISTA DA ARMADA