Page 81 - Revista da Armada
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actual Etiópia, cristianizada desde o século importante desta epístola, porém, é o facto Leão de Judá. É, assim, possível que, na
IV) e os nestorianos que se implantaram na de alargar o leque de possibilidades para a Europa, esta lenda acabasse por ser distorci-
Ásia, atingindo algumas zonas da Índia (os localização do mítico rei-sacerdote, uma da e a salomónica ascendência transferida
famosos “cristãos de S. Tomé”, da costa do vez que se refere às “Três Índias”. Talvez para um dos reis magos(3), adaptando-se,
Malabar, cujas comunidades teriam, segun- por, numa peregrinação à Terra Santa, ter deste modo, à mítica origem do Prestes
do a lenda, sido fundadas por aquele após- encontrado peregrinos abexins (etíopes) (cujo nome poderá ter derivado, conforme
tolo) e da Tartária, onde foram convertidos que lhe comunicaram o interesse do seu anteriormente referido, do tratamento Zan-
os turcos Kereitas e algumas tribos imperador em instruir-se no catolicismo -hoy dado aos soberanos etíopes).
mongóis. Em todas estas regiões o lendário romano, foi, provavelmente, à Abissínia O longo isolamento a que a Abissínia foi
rei foi procurado, tendo sido, na verdade, que Mestre Filipe se dirigiu, em 1177 com a sujeita até se libertar finalmente do domínio
encontrado um pouco por todas elas. resposta do Papa. muçulmano, nos finais do século XIII, terá,
À data das primeiras notícias do Prestes, Mas eis que vieram, novamente, da Ásia sem dúvida, alimentado fantasiosas especu-
uma tribo turco-mongólica - Kara Kitai - notícias frescas, desta vez relacionadas com lações sobre aquele país misterioso situado
chefiada por um tal Ye-liu Ta-che conquis- um suposto descendente do Prestes, o já nos confins do mundo conhecido de então.
tou Samarcanda (1137) e obteve uma anteriormente referido rei David que, de Tal não impediu, no entanto, que se esta-
grande vitória sobre o sultão seldjúcida do acordo com a carta do bispo de Acre (1221) belecessem alguns contactos pontuais entre
Irão Ocidental (1141). As notícias das vitó- tinha "três exércitos. Um deles foi mandado peregrinos europeus e etíopes, que os
rias destes inimigos do Islão poderiam facil- para a região pertencente a Colaph, irmão árabes ocasionalmente autorizavam a
mente levá-los a ser confundidos com um do sultão do Egipto, o outro contra deslocar-se à Terra Santa, e se fizessem
povo cristão, sendo até provável que tives- Bagdade e o terceiro contra Mossul. E agora esporádicas visitas de missionários católicos
sem combatido aliados a tribos cristianiza- o rei (…) apressa-se para alcançar a Terra à Abissínia (a primeira embaixada oficial,
das (não está, aliás, posta de parte a possi- Prometida, a fim de visitar o sepulcro de
bilidade dos Kara Kitai serem, eles próprios, Nosso Senhor e reconstruir a Cidade Santa.
cristãos). Reza a tradição que este Ye-liu Ta- Mas, antes disso, é sua intenção (…) subju-
che terá usado o título de Gur-Khan, nome gar a terra do sultão de Icónio, Caláfia e
que em árabe se pronunciaria Yuhanan e Damasco e ainda as regiões intermédias, a
que poderia, mais tarde, ter sido latinizado fim de não deixar um só inimigo atrás de
para Iohannes. Na verdade, o título de Gur- si". De acordo com este relato estava-se,
-Khan foi apenas utilizado pelos sucessores sem dúvida, em presença de um terrível
de Ye-liu Ta-che, mas é possível que a com- flagelo dos "infiéis". Se não era o Prestes
ponente Khan (rei) figurasse em qualquer João, só poderia ser alguém com uma
do título que lhe tenha sido atribuído. Ora grandeza equivalente! E era, de facto: em-
Khan, além de poder ser, à mesma, deturpa- bora tenha realmente existido um rei geor-
do para Yuhanan, pode também ser facil- giano chamado David que infligiu uma
mente confundido com Kham (sacerdote). É, severa derrota a um numeroso exército
assim, plausível, que o nome do rei-sacer- muçulmano, as tropas que se aproximavam
dote tenha tido aqui a sua origem. vindas do Oriente eram, na verdade, con-
Outra teoria refere a possibilidade de João duzidas por outro grande inimigo do Islão -
derivar de Zan-hoy (meu senhor), tratamento Gengis Khan(2), o conquistador mongol
que era dado ao imperador da Etiópia. Sob o cujos domínios acabariam por se vir a
domínio muçulmano, esta região, que até estender até às franjas da Europa.
então mantivera o contacto com o restante Durante as suas viagens (1271-1295), o ex-
mundo cristão, encontrava-se isolada da plorador Marco Polo viria, posteriormente,
Europa desde o século XI. Poderia, então, a identificar os tártaros como o povo do
aquela forma de tratamento ter-se mantido Prestes João, embora já em franca decadên-
no imaginário colectivo ocidental, deturpada cia, pois as fracas remanescências do seu
para Giannoi, Giovanni ou Johannes e acaban- antigo esplendor eram, então, claramente O Preste João representado no frontispício da História
do por se misturar com as primeiras notícias ofuscadas pelo brilho da corte de Kublai da Etiópia, de Manuel de Almeida (Coimbra, 1660).
das vitórias de Ye-liu Ta-che. Khan, a quem prestavam vassalagem.
Seja como for, o mito surgiu numa altura enviada pelo papa João XXII, chegaria ape-
em que a Europa se encontrava sitiada O PRESTES JOÃO NA ABISSÍNIA nas em 1316). Começam, assim, a chegar, a
pelas forças do Islão, da Ásia Menor ao partir do século XIV, relatos fascinantes
Norte de África e com uma boa parte da Tendo-se revelado infrutíferas as buscas sobre aquela região, que não mais deixaria
Península Ibérica ainda a servir de “ponta do Prestes por terras da Ásia, as atenções da de ser referida como "a terra do Prestes
de lança” a um possível avanço dos “infi- Europa começavam a voltar-se para a João". Falavam esses relatos de impressio-
éis”, pelo que se desejava ardentemente o África, mais concretamente para a Abissínia nantes basílicas chapeadas a ouro(4) e
surgimento de um aliado poderoso que ata- (a "Média Índia"). Evangelizada no século mesmo o túmulo do apóstolo Tomé, tradi-
casse o inimigo pela rectaguarda e aliviasse, IV, manteve-se cristã mesmo após as cionalmente localizado em Meliapor, na
assim, um pouco a pressão. invasões árabes no século VII, embora Índia, passa, muitas vezes a ser assinalado
Mas as atenções começavam a deslocar- acabasse por ficar isolada do mundo cristão na região correspondente à "Média Índia".
-se para a Abissínia. A pretensa carta do ocidental. Segundo uma lenda, talvez forja- Poderá, à primeira vista, não existir qual-
Prestes, em 1165, tratava-se, sem dúvida, de da pelos próprios com o intuito de con- quer relação entre as localizações asiática e
uma mistificação, devido ao seu carácter vencer os seus súbditos da nobreza da sua africana do reino do Prestes. Se tivermos,
extremamente fantasioso (que não o era, linhagem, os imperadores da dinastia que porém, em conta que a cartografia medieval
porém, no pensamento do homem medie- se estabeleceu a partir de 1270 eram descen- não dispunha da capacidade de representar
val), o que não se sabe é se se tratava de dentes do rei Salomão e da rainha de Sabá o Mundo como um todo, recorrendo muitas
uma brincadeira ou de um embuste cons- (a Sabá bíblica situar-se-ia no território do vezes a uma justaposição de levantamentos
ciente da parte de alguém influente que actual Iémene, portanto logo do outro lado parciais em que o posicionamento relativo
pretendesse levantar o moral cristão(1). O do Mar Vermelho) e usavam o título de era grosseiramente distorcido devido a ✎
REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2000 7