Page 84 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (1)



                O reinado do Venturoso
                O reinado do Venturoso




                Manuel I foi aclamado rei em 27 de  ficou como espaço de fantasia para grande
                Outubro de 1495, logo após a mor-  parte da Europa.
         D.te de D. João II que deixara a sua  D. Manuel soube esperar pacientemente
         sucessão lavrada em testamento. Mereceu o  pela sua sorte, enquanto os seus irmãos e
         cognome de Venturoso e não há dúvida que  primos se extinguiram em conspirações con-
         fez jus a este epíteto, tal foram as circuns-  tra o rei. Mesmo na fase final da vida do
         tâncias que o levaram ao trono de Portugal e  Príncipe Perfeito, quando este tentava que a
         os felizes acontecimentos que marcaram o  sucessão coubesse ao seu filho bastardo, D.
         seu reinado. D. Manuel era o 9º filho do in-  Manuel esperou sem um murmúrio. Espe-
         fante D. Fernando, irmão de D. Afonso V e,  rou que a rainha sua irmã manobrasse a seu
         quando nasceu em Alcochete, a 31 de Maio  favor, que fossem feitas todas as pressões ne-
         de 1469, só de forma muito remota poderia  cessárias e que, finalmente, D. João II acabas-
         pensar-se que viria a ser rei de Portugal. D.  se por reconhecer que devia ser ele o futuro
         João II tinha apenas um filho legítimo, para  rei de Portugal. E D. Manuel acreditou que o
         quem fizera planos de uma enorme gran-  seu prodigioso percurso era obra de uma
         deza: o príncipe casara com uma filha dos  força superior, uma força que afastara todos
         reis católicos e poderia vir a herdar, não só a  os obstáculos para que fosse ele a colher o
         coroa de Portugal, como toda a Espanha.  doce fruto. Toda a sua vida é marcada por
         Contudo, um estúpido acidente de cavalo  um enorme misticismo (messianismo) inti-
         roubara-lhe a vida em 13 de Julho de 1491.  mamente ligado a esta espécie de prodígio
         Entretanto, os irmãos de D. Manuel – even-  do destino. Sentiu-se escolhido e aceitou a
         tuais candidatos por serem netos de D.  glória de ter sido o soberano que conseguiu
         Duarte - viriam a morrer em circunstâncias  a  ligação marítima directa com a Índia, com
         várias (um deles foi morto pelo próprio rei  o espírito de quem cumpriu uma missão his-  D. Manuel I. Aguarela de Roque Gameiro
         D. João II, acusado de traição) e, de um mo-  tórica para Portugal e para a cristandade.
         mento para o outro, D. Manuel vê-se como o  Quando morreu D. João II, alguns dos pre-
         primeiro candidato ao trono. O seu anteces-  parativos da viagem de Vasco da Gama já
         sor ainda tentou pôr no trono D. Jorge, seu  estavam começados. Provavelmente já teria
         filho bastardo, mas pressões de diversa  sido escolhido o próprio capitão-mor da es-
         ordem não o permitiram e no testamento  quadra. Mas quando D. Manuel reuniu o
         que deixou privilegiou o primo, que já her-  seu Conselho para que apreciasse as vanta-
         dara os títulos de Duque de Viseu e de Beja,  gens da expedição, a sua opinião foi a de que
         para além de vantagens várias que pertenci-  a mesma não se devia realizar. A Índia era  A Marinha Portuguesa,
         am aos seus falecidos irmãos. Nasceu pois  longe e o caminho incerto. Aqui mesmo ao  no reinado de D. Manuel,
         com uma boa estrela, como é usual dizer-se.  pé, no Norte de África, havia um espaço que
         E com uma boa estrela que o iria acompa-  servia às mil maravilhas as aspirações da no-  irá viver um dos seus
         nhar na actividade governativa, revelando-  breza portuguesa. Só com um grande opti-  períodos mais notáveis e,
         -se na realização quase imediata dos sonhos  mismo e com o tal espírito de que o levava a
         do Príncipe Perfeito. Ainda não tinham passa-  sentir-se predestinado para uma missão  sobretudo, aquele
         do três anos sobre a sua aclamação, quando  transcendente, ultrapassou todas as vozes  em que a sua acção mais
         partiu a esquadra de Vasco da Gama a cami-  discordantes e mandou seguir o Gama. Al-
         nho da Índia, e o dobrar do século trazia a  guns anos mais tarde, já no século XVI, o  se fez sentir na História
         notícia do encontro de um novo continente,  Conselho voltou a dizer-lhe que devia aban-  de Portugal.
         com a expedição de Cabral. Os anos sequen-  donar o projecto do Oriente, mas o rei man-  Na verdade foi ela
         tes foram marcados pelo estabelecimento de  tinha-se obstinado. Seria a ideia de chegar a
         um poder efectivo no Oriente e é fácil de adi-  Jerusalém? de que seria imperador do Orien-  o instrumento fundamental
         vinhar como isso teria de ser feito à custa de  te? de que chegaria a acordo com o Preste  do “sonho português”
         bons navios e bem armados.         João? ou, tão somente, de que conseguiria es-
           A Marinha Portuguesa, no reinado de D.  tabelecer um poder naval que lhe traria
         Manuel, irá viver um dos seus períodos mais  grandes benefícios, apanhando um comércio
         notáveis e, sobretudo, aquele em que a sua  que estivera dividido pelos marinheiros do
         acção mais se fez sentir na História de Por-  Índico, pelas caravanas da Arábia e pelos
         tugal. Na verdade foi ela o instrumento fun-  mercadores do Mediterrâneo, durante sécu-
         damental do “sonho português”. Um sonho  los? Foi sem dúvida com uma grande ener-
         elaborado por D. João II e realizado pelo seu  gia que conseguiu transmitir a muitos dos
         primo e sucessor: alcançar a Índia das espe-  seus súbditos, e com as contingências pró-
         ciarias, dos discípulos de S. Tomé, do Preste  prias do país e do momento.
         João; a Índia que preencheu o imaginário de
         milhares de portugueses do século XVI, que          J. Semedo de Matos
         inspirou Camões e que, por muitos séculos,                    CTEN FZ

         10 MARÇO 2000 • REVISTA DA ARMADA
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