Page 57 - Revista da Armada
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Tentemos recuar no passado e imaginar   O Hospital Real da Marinha era um edi-  ta de Baixo, e um portal trabalhado da an-
         esse dia, de grande festa para um país ca-  fício de boa traça, com evidente qualidade  tiga sacristia e que ainda hoje se pode ver
         tólico, o dias de Todos os Santos de 1806,  estética, obra do arquitecto italiano Fran-  na porta de acesso à sala de espera do ser-
         no Campo de Santa Clara.           cisco Xavier Fabri, em Portugal desde 1790  viço de Patologia Clínica.
           A entrada foi solene e em cortejo,                                        À fachada actual, que não tinha o
         pela porta de cima, com os acólitos e                                     acrescento menos feliz onde hoje é o
         cruz alçada, seguidos pelo padre Ca-                                      Bar de oficiais, com o seu corpo avan-
         pelão do Hospital paramentado de                                          çado, os janelões, o requintado escudo
         acordo com a solenidade do dia, as-                                       com as armas reais, frontão triangular
         pergindo água benta.                                                      de cantaria e os pináculos piramidais,
           Imediatamente atrás seguia o Físi-                                      num estilo neoclássico sóbrio, equili-
         co Mor da Armada, Inácio Xavier da                                        brado, juntava-se frontão semelhante,
         Silva, Director, no seu uniforme com                                      mas no mesmo plano de fachada, exis-
         casaca azul ferrete, de gola e canhões                                    tente na frontaria da Rua do Paraíso e
         encarnados, por cima de véstia, cal-                                      que hoje já lá não está.
         ções e meias brancas, sapatão afive-                                         O tom geral do edifício era ocre,
         lado, apoiando-se com a mão direita                                       idêntico ao que actualmente ostentam
         na vara médica, ou bastão da serpe, a                                     os da Praça do Comércio.
         mão esquerda no punho do chifarote                                          A estrutura principal ainda hoje se
         embainhado de couro preto que desa-                                       mantém: um corpo frontal levemente
         parecia sobre as abas da casaca.                                          angulado para acompanhar o traça-
           Na cabeça peruca branca, já ana-                                        do da Rua do Paraíso, outro posterior,
         crónica na moda civil, e sobre ela o                                      unidos quase perpendicularmente por
         chapéu armado, virado a três quar-                                        outros três corpos, com maior cumpri-
         tos para a direita como mandava o                                         mento o do lado nascente, que bordeja
         regulamento.                                                              a Calçada do Cardeal , e de menor di-
           Acompanhava-o o corpo do Hospi-                                         mensão o do lado poente, delimitando
         tal, composto por mais três ou quatro                                     dois pátios de diferentes tamanhos.
         médicos e cinco ou seis cirurgiões, tam-  D. Rodrigo de Sousa Coutinho – Conde de Linhares.  Para as traseiras um jardim em so-
         bém eles devidamente uniformizados.                                       calcos e lá em baixo a margem arenosa
         A vara sérpea era privativa dos médicos.  e que viria a deixar obra de valor dispersa  do Tejo. A panorâmica das janelas traseiras
           Na altura médicos e cirurgiões eram coi-  pelo país. Foi mais tarde, um dos arqui-  era, como ainda o é hoje, soberba.
         sas diferentes.                    tectos da Ajuda.                     Naqueles tempos não havia diferenças de
           Os primeiros, ainda por vezes designa-  Do primitivo colégio jesuíta do Séc. XVII  vulto entre arquitecto e engenheiro civil.
         dos por físicos, eram licenciados por uma  pouco se aproveitou. Sobraram as escadas   O cuidado posto por Fabri no desenho
         Universidade. No caso português Coim-  de acesso ao piso principal a partir da por-  da fachada foi acompanhado por igual re-
         bra. Os cirurgiões eram uns práti-                                         quinte nas suas estruturas interiores,
         cos que aprendiam uma arte nas                                             nomeadamente cozinha, tubagens
         várias escolas e cirurgia existentes                                       de águas quentes e frias e concepção
         no país, das quais a mais importan-                                        dos fogões.
         te em Lisboa, era a do Hospital de                                          Para quem se interessar pelo as-
         S. José. No fim faziam um exame e                                           sunto, pelo seu próprio punho as
         se eram aprovados tinham direito a                                         descreve, em documento existente
         carta atestatória da sua competência                                       no Arquivo Histórico Ultramarino e
         e ao exercício da profissão.                                                publicado pela Gulbenkian.
           Havia várias escolas no país que                                          Em 1806 era um edifício moder-
         também produziam cirurgiões com-                                           níssimo e repleto de soluções ino-
         petentes e em locais que hoje nos                                          vadoras.
         podem surpreender: Chaves, Elvas,                                           No referido cortejo ainda se incor-
         Almeida, Campo Maior, Porto evi-                                           porava Bernardino António Gomes
         dentemente, e outras.                                                      (pai), 1º Físico da Armada, mas já
           Compreende-se: a existência de ci-                                       não Teodoro Ferreira de Aguiar, até
         rurgiões era fundamentalmente para                                         1805 Cirurgião Mor da Armada, e 1º
         as forças armadas. Daí a existência                                        Cirurgião do Hospital.
         de escolas regimentais em várias                                            Fora o proponente de um bem ela-
         praças militares portuguesas.                                              borado plano para a criação da Es-
           Voltemos ao nosso cortejo. Ao cor-                                       cola de Cirurgia do Hospital Real da
         po clínico seguiam-se os Boticários                                        Marinha em 1799. Ainda nomea do
         em traje civil, pois não eram milita-                                      lente por portaria, nunca viu despa-
         res, enfermeiros, na sua maioria far-                                      chado o seu projecto. Como tantos
         dados, alguns doentes também uni-                                          outros submetidos à consideração
         formizados que podiam seguir pelo                                          superior, também este acabou numa
         seu pé e depois porteiros, pessoal                                         qualquer gaveta aguardando opor-
         serventuário etc.                                                          tunidade. Em 1805, ressentido, com
           Terá sido um espectáculo colorido                                        vários anos de expectativa sempre
         e como tal presenciado por popula-                                         defraudada na concretização do seu
         res do vizinho Bairro de Alfama.                                           projecto, Teodoro de Aguiar pediu
           Ao longo do dia, em carroções fo-  O Príncipe Regente assina o alvará de construção do Hospital da Marinha – 1797.  exoneração da Marinha, estando
         ram chegando os doentes acamados.  Pormenor dos azulejos da Sala do Príncipe.  graduado em capitão de fragata e
                                                                                     REVISTA DA ARMADA U FEVEREIRO 2006  19
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