Page 54 - Revista da Armada
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qualquer dos casos todo este acréscimo de pano e navios-vapor, como frequentemente se preten- material passou a ser utilizado na construção de
pareceu não satisfazer armadores e comandan- de fazer crer. E a explicação é tão simples quan- grandes veleiros , pouco tempo depois. Embo-
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tes, vendo-se estes impelidos a aumentar ainda to concisa, na exacta medida em que as mais ra muitos armadores antigos mantivessem uma
mais a já colossal superfície vélica para melhorar elementares leis do mercado sempre ditaram certa preferência pelos navios em madeira, uma
a velocidade com vento fraco. Nessas circuns- que a sobrevivência de qualquer investimento vez que durante as longas viagens o carpinteiro
tâncias irão ser adicionadas outras velas, regra se encontra intimamente relacionada com o re- de bordo podia facilmente efectuar todo o tipo
geral uma em cada bordo, por fora das vergas torno que este proporciona. Por outras palavras, de reparações, numa altura em que os estalei-
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do pano redondo , a saber: varredouras, cutelos enquanto os veleiros propiciaram maiores valias ros ainda eram raros fora da Europa e da Amé-
e cutelinhos, todas elas envergadas nos rica do Norte.
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denominados paus de cutelo . As pri- De referir ainda que até 1840 a pro-
meiras por fora dos papafigos, fazendo tecção do casco dos navios em madeira
as respectivas escotas retorno nos laises era conferida, como vimos, pelo forro
dos paus de surriola, que para o efeito Arquivo CTEN António Gonçalves de chapas de cobre. No entanto com
deviam ser mantidos disparados com o a descoberta do metal de Muntz, vulgo
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navio a navegar; as segundas colocadas latão , porque mais duro e resistente,
por fora das gáveas e dos velachos, e as este foi de pronto adoptado com van-
terceiras caçadas ao nível dos joanetes, tagem nas mesmas funções. Contraria-
e mesmo dos sobres . Por incrível que mente, os primeiros navios de casco em
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possa parecer, a incansável busca pelo ferro sofriam de graves problemas a este
incremento da velocidade, nas con- nível, uma vez que até 1870 não existia
dições atrás referidas, levou ainda ao forma de garantir a sua protecção antes
aparecimento de umas pequenas velas de ser descoberto um tipo de tinta real-
no único espaço ainda livre, ou seja, mente eficaz, contendo um composto
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acima das vergas mais altas. Estas ve- à base de cobre .
las tinham forma triangular e cobriam Entre a construção em ferro e aquela
os intervalos existentes em cada bordo, que se encontrava baseada na utilização
entre o galope do mastro e os laises da exclusiva de madeira foi experimenta-
última verga. Em Portugal ficaram co- do, durante algum tempo, o denomina-
nhecidas como orelhas de mula . As do método compósito, em que o ferro
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do mastro grande eram apelidadas de era utilizado para dar forma às balizas e
mulas grandes e as do traquete mulas vaus. Este facto desde logo contou com
de proa. Nesta fotografia da antiga Sagres podem observar-se varredouras e cutelos o entusiasmo dos armadores envolvidos
Por via dos problemas inerentes ao triangulares, bem como uma orelha de mula nos mastros grande e traquete. no transporte do chá e de lã já que es-
novo sistema propulsor, que havia pouco tem- face aos ainda pouco fiáveis navios-vapor, os ar- tas estruturas em ferro, porque mais resistentes,
po tinha começado a dar os seus primeiros pas- madores continuaram a preferi-los. Quando fo- eram de dimensões substancialmente menores
sos, a maior parte dos navios-vapor construídos ram ultrapassados os problemas intrínsecos ao do que as correspondentes em madeira. Desta
até cerca de 1880 dispunham de mastros onde novo meio de propulsão, e resolvido o problema forma sobrava nos porões um maior espaço dis-
envergavam uma quantidade apreciável de ve- relacionado com o reabastecimento de carvão ponível onde podiam ser transportadas maiores
las, que eram particularmente úteis quando se nos longínquos portos do Oriente, este último quantidades das preciosas cargas.
esgotava o carvão, ou sempre que as pouco fiá- caso em grande parte facilitado pela abertura do Para além dos positivos reflexos do ponto de
veis instalações de vapor sofriam avarias que não canal de Suez (1868), rapidamente os armado- vista estritamente comercial, também a resistên-
podiam ser resolvidas com os escassos meios e res colocaram de parte a utilização de veleiros, cia longitudinal do casco dos navios conheceu
conhecimentos existentes a bordo. mesmo nas rotas longínquas e onde até então se um grande incremento com a utilização dos no-
Convém em contracorrente referir que, apesar tinham mostrado aparentemente imbatíveis. No vos materiais, uma vez que os pequenos com-
das teses desenvolvidas por alguns historiadores entanto, pensamos que o decisivo golpe disfe- primentos das peças em madeira não garantiam
nesse sentido, nunca existiu, de facto, durante o rido pela propulsão mecânica terá sido obra do a rigidez estrutural exigível a todo o conjunto,
século XIX, uma verdadeira guerra entre veleiros senhor Rudolf Diesel (1870-1914), em 1897. cerceando desde logo qualquer hipótese de
Todas estas alterações em tão curto construir navios de maiores dimensões. Por isso,
espaço de tempo vieram conferir uma com a construção do casco em ferro, utilizan-
maior regularidade e número de liga- do chapas e longarinas de maiores dimensões
ções ao transporte marítimo, sendo os e mais resistentes, esta limitação foi finalmente
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navios-vapor em grande parte responsá- ultrapassada , beneficiando-se ainda de uma
veis por esta melhoria. Esta conjuntura maior facilidade em obter formas de casco de
levou a que o preço do ferro em 1880 design particular.
não ultrapassasse metade do valor atin- Os grandes veleiros utilizados na rota dos
Foto CTEN António Gonçalves
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gido em 1850, três décadas antes. Como nitratos , nomeadamente entre os principais
consequência directa, a sua utilização portos da Europa e do Chile, começaram desde
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na construção naval passou a assu- cedo por ser veleiros com casco em ferro. No en-
mir-se como extremamente competiti- tanto, uma vez que o rápido avanço tecnológico
va, com a agravante de os principais ti- cedo proporcionou chapa de aço a preços mui-
pos de madeira começarem a escassear to competitivos, os grandes armadores europeus,
nas imediações dos grandes estaleiros, envolvidos na actividade do transporte de longo
obrigando por isso ao seu transporte a curso (Laeisz, Rickmers, Hilgendorf, Bordes, Erik-
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partir de distâncias sempre crescentes, son) , rapidamente adoptaram, com vantagem,
com os inevitáveis reflexos no aumento a utilização do novo material. Fruto de uma resis-
do preço final. tência acrescida, os novos navios dispunham de
Tendo começado a ser construídos chaparia com um quinto da espessura do ferro,
O veleiro russo Kruzenshtern (ex-Padua) um dos poucos so- navios de ferro em Inglaterra no segun- representando no total uma diminuição do peso
breviventes da rota dos nitratos. do quartel do século XIX, também este na ordem dos 15%.
16 FEVEREIRO 2006 U REVISTA DA ARMADA