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A MARINHA DE D. JOÃO III (9)
A fortaleza de Calecut
A fortaleza de Calecut
alecut continuava a ser um espinho nos e à aliança que conseguiram cimentar ças fossem retiradas para Cochim, e mandou
encravado nas pretensões portugue- com o Samorim, que entendeu muito bem fazer um baluarte externo com um passadi-
Csas na Índia, apesar de vigorarem os como lidar com o que era uma verdadeira ço (uma couraça) que protegesse o acesso à
tratados assinados ainda no tempo de Afon- galinha de ovos de oiro. Contudo, o porto praia. O governador enviou-lhe os reforços
so de Albuquerque. Nesse tempo, o velho que servia a cidade era bastante mau, não que conseguiu reunir, e a fortaleza preparou-
Samorim que defrontara Vasco da Gama dava abrigo suficiente durante a monção se para resistir aos ataques que, seguramen-
e Cabral foi alvo de uma conjura política, de sudoeste e tinha fracas condições para te, lhe iriam ser lançados durante a estação,
movida pelo governador, onde participara embarque e desembarque de mercadorias, como veio a acontecer. De Maio até Setem-
o seu sobrinho e natural bro os portugueses de
sucessor no cargo. Com Calecut viveram num
isso se conseguiu um permanente sufoco, com
acordo de paz e a auto- ataques constantes e
rização para a constru- bombardeamentos que
ção de uma fortaleza, duravam o dia e a noi-
que funcionaria como te, de que resultaram
símbolo da soberania graves danos na própria
lusitana no território. muralha, e a situação era
Correspondia, aliás, a insustentável por mais
uma determinação real tempo. Contudo, quan-
e percebe-se bem que a do o tempo começou
ideia de ter uma forta- a melhorar, Heitor da
leza num território tão Silveira conseguiu reu-
hostil, como sempre o nir em frente de Calecut
fora Calecut, era uma uma imensa esquadra
afirmação de força de de mais de cem navios,
grande importância. a que se juntaram cerca
Acontece, no entanto, de vinte cinco que o go-
que a presença de for- vernador D. Henrique
talezas no contexto da de Meneses levou de
afirmação de um poder Fortaleza de Calecut mandada destruir em 1525, por ordem de D. Henrique de Meneses. Cochim. Em Novembro
Lendas da Índia–Gaspar Corrêa.
que devia ser, essencial- de 1525 estava ali uma
mente, naval, não pode ser vista de forma dificultando a presença permanente de das maiores forças navais portuguesas que
linear, como aconteceu em Calecut. A for- uma esquadra portuguesa. Com o passar alguma vez tinha actua do na Índia.
taleza é importante porque confere protec- dos anos, a aliança de cumplicidade que Diz-nos Gaspar Corrêa que “sendo do-
ção a um ponto de apoio naval, porque está Albuquerque conseguira, em 1513, com o mingo seis dias de nouembro, dia de são
num local importante para o controlo do novo soberano foi sendo minada pelos in- Lionardo, duas horas ante menhã, estavam
movimento de navios, porque representa teresses muçulmanos que, sistematicamen- derredor do galeão [do governador] as em-
uma capacidade de domínio sobre o mar. te, afrontavam a fortaleza e continuavam a barcações que auião de hir a terra, em que
Se, debaixo do poder da fortaleza e da sua desenvolver o seu comércio. O Samorim estavam mil e quinhentos homens arma-
guarnição não se abriga uma esquadra com não chegava ao ponto de abrir formalmen- dos”. O desembarque foi coordenado com
capacidade de intervir no mar, a sua capa- te hostilidades, mas ia fechando os olhos uma saída das forças que estavam em terra
cidade resulta diminuída, como me parece às iniciativas da comunidade muçulmana, e resultou em pleno, obrigando o Samorim
que aconteceu em Calecut. Tem um carácter e pondo água na fervura quando as coisas a propor novo acordo de paz. Henrique de
simbólico – é certo! –, permite armazenar iam longe demais ou (mais concretamente) Meneses, apesar de tudo, tinha a noção de
em segurança as mercadorias e dá abrigo a quando se sentia ameaçado. O problema era que este sucesso era precário e que tudo se
uma pequena força militar. Mas os símbo- tão simples quanto isto: não havia ali na- repetiria, mais dia ou menos dia. Reunido
los de poder não conseguem manter o seu vios portugueses com capacidade suficiente com o conselho dos fidalgos que serviam
prestígio, se não forem acompanhados do para controlar o movimento adversário, e na Índia, propôs que se despejasse a forta-
exercício concreto desse mesmo poder. A no período da monção de sudoeste a guar- leza deixando-a minada com pólvora para
História mostra -nos ainda que, se este exer- nição ficava exposta aos ataques inimigos que explodisse quando todos estivessem
cício for continuamente desafiado sem res- pela impossibilidade de reforço externo; de embarcados. Destruir uma fortaleza man-
posta, acaba por ter um efeito estimulante forma que, aquilo que se pretendia ser um dada construir pelo Rei de Portugal não
na moral inimiga, cujos ataques serão cada exemplo e um símbolo do poder português era uma decisão fácil, mas achava ele que
vez mais frequentes e desgastantes. na Índia, na prática, tinha uma enorme fra- seria mais eficaz e menos oneroso manter
Assim aconteceu com Calecut por longos gilidade revelava-se contra producente. a guerra no mar com uma esquadra, do
anos, por razões que é fácil de entender. A Na altura em que faleceu Vasco da Gama que ter de organizar expedições tão gran-
grande importância da cidade resultava de e lhe sucedia D. Henrique de Meneses no des como aquela, para socorrer a fortaleza.
um circunstancialismo político próprio que governo da Índia, o conflito com os mouros Foi o que se fez.
antecede a presença portuguesa (“Marinha de Calecut assumia proporções irreversíveis Z
de D. Manuel 9”). Essencialmente, está li- e a guerra era inevitável. O capitão D. João J. Semedo de Matos
gada à ascensão dos mercadores muçulma- de Lima mandou que as mulheres e crian- CFR FZ
14 FEVEREIRO 2006 U REVISTA DA ARMADA