Page 248 - Revista da Armada
P. 248

HISTÓRIAS DA BOTICA (52)



                                             A Oração
                                             A Oração



              astava ver os olhares dos outros mé-
              dicos naquela unidade de cuidados
         Bintensivos. Um certo vazio no olhar,
         um misto de ausência e impotência, afirmava
         a todos que a morte rondava. Ele, o doente,
         parecia sereno e rezava baixinho o que pa-
         recia a muitos, e a mim também, como uma
         canção repetitiva:
           Tudo foi para o melhor
           Deus está comigo onde eu for
           Tudo será para o meu bem
           Tudo faz sentido
           Tudo fará sentido…
           Tanto repetia estas e outras frases, que
         alguém chegou a pensar que para além do
         coração, este velho militar, também não
         estaria bem do espírito... Percebi, melhor
         esta atitude daquele doente (que nesta his-
         tória chamarei adequadamente – Homem
         de Fé), quando me explicaram que ele e a
         sua família eram cristãos evangélicos. Vá-
         rios familiares e amigos vinham rezar com
         ele (…não por ele, percebi rapidamente).
         Na hora da visita, lá estavam eles. Faziam
         da oração um acto público, pouco habitual
         na nossa cultura. Contudo, assim que nos
         adaptámos ao estranho da situação, passá-
         mos a sentir grande serenidade no grupo.  te: confiança e esperança, em vez de expia-  uma bola perdida. Recordo vivamente, nesse
         Não se pedia perdão, ou se falava em pe-  ção e castigo – como ainda se sentimos com  funeral o Sr. Padre afirmou que Deus o tinha
         cado, castigo, ou medo. Rezava-se, por ve-  frequência entre os católicos – e por isso me  levado para melhor lugar. Pareceu-me então,
         zes até rindo baixinho, sempre da mesma  pareceu corajosa e benéfica.  no meu entendimento infantil, estranho que
         forma positiva – o que, dada a gravidade   Transmitia-se a ideia de um divino entre  um Deus bom quisesse levar o meu amigo
         clínica, parecia quase um acto de ousadia  nós. Rezava-se porque se acreditava, por-  para um lugar melhor do que aquela infân-
         irresponsável.                     que se recusava a solidão da dor e da doen-  cia feliz em que ele certamente quereria estar.
           O paciente apresentava uma situação  ça, não se pediam milagres, só se aceitava  Achei (e ainda acho muitas vezes), que Deus
         cardíaca grave – insuficiência cardíaca. Tra-  o conforto da oração. Nascia naturalmente  não terá tantos poderes como lhe atribuem,
         ta-se de uma situação em que a falência do  serenidade. A última vez que me senti assim  ou que não controla simplesmente o acaso. O
         coração – na sua capacidade para bombe-  tão perto de um superior e próximo, foi no  acaso comanda de algum modo a vida. Só as-
         ar o sangue que alimenta o corpo – acar-  saudoso Timor. Aí – nunca me esquecerei –  sim se compreende que rapazinhos inocentes
         reta uma grande incapacidade para levar a  uma senhora, idosa, de nome Joana, a quem  adoeçam gravemente e morram e que tiranos
         cabo as tarefas diárias mais simples e que  a fome física e a doença atormentavam, ao  reconhecidos, da laia de um Hitler e de mui-
         requer, nas fases mais avançadas, múltiplos  receber pela minha acção medicamentos e  tos outros de que a história da humanidade
         internamentos até um desfecho pouco feliz.  alimentos básicos, simplesmente leite e pão,  está tristemente cheia, que fizeram e fazem
         Assim era com este Homem de Fé, que se  trazidos do navio, tornou-me:  sofrer milhões de inocentes, não tenham tido
         apresentava numa situação muito séria. Tão   - Nada tenho para lhe agradecer. Ofereço-  um acidente fulminante, que os levasse (esses
         séria, que ao terceiro dia piorou e foi venti-  -lhe as minhas orações…  sim) para melhor sítio – um em lhes não fosse
         lado artificialmente.                 Nesse dia – como muitos que passei em  permitido fazer tanto dano a outros…
           Ficou sob sedação, inconsciente para o  T imor – senti-me em paz. Senti que a vida fazia   Tornei-me mais consciente de Deus do
         mundo. No entanto, todos dos dias – as-  sentido e que tinha sido largamente recompen-  que praticante. Acredito, que haverá um ser
         sim me diziam os enfermeiros – o mesmo  sado, pela oferta da digna senhora…  superior, já o senti nas Igrejas, nas Sinagogas
         grupo vinha rezar, como se ele os pudesse   Contudo, na maior parte das vezes, volto  e até nas Mesquitas…Não me parece que te-
         ouvir e falar com eles. Fiquei impressiona-  à revolta do sentir triunfar os malvados, ga-  nha esta ou aquela forma, que seja um exclu-
         do, com o comportamento destas pessoas.  nhar a mentira e aumentar, sem fim à vista, a  sivo desta ou daquela prática religiosa, pare-
         Tenho com o Deus cristão uma relação di-  opressão e egoísmo. Então, certamente como  ce-me que terá que ser bom e compreensivo.
         fícil, como o terão muitos médicos que não  a muitos, a minha fé fraqueja. Por outro lado,  Que lá tem os seus desígnios para cada um
         acham, facilmente, razão para a dor e sofri-  sinto a mensagem religiosa desusada no nos-  de nós, mas não interessa perceber bem o
         mento que os rodeiam, na sua prática clínica  so tempo, porque distante. A este propósito,  porquê das coisas más. Parece-me, e disso
         diária. No entanto, em relação a este grupo  lembro frequentemente o funeral do Zé An-  estou quase certo, que vale a pena recorrer
         impressionou -me a paz que transmitiam. Im-  tónio. O Zé António era o meu colega de  a Ele, quando tudo o resto nos abandonou.
         pressionou-me, ainda mais, a mensagem de  carteira na 4ª classe. Morreu em acidente de  Não para pedir desculpa pelos nossos peca-
         solidariedade, que afirmavam publicamen-  viação, por ter atravessado a estrada atrás de  dos (a vida já é suficientemente dura e cheia

         30  JULHO 2007 U REVISTA DA ARMADA
   243   244   245   246   247   248   249   250   251   252   253