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de 1780, ficando concluída apenas em fi- leotas do mais profundo esquecimento, ou- rização de materiais, isto é, a identificação e
nais de Novembro de 1783 (Cutileiro, 1973: torgando-lhes um lugar à altura da sua valia datação das camadas decorativas ainda exis-
27). A técnica de construção utilizada foi a patrimonial. (Coutinho, 1942: 1) tentes, mediante a utilização das diferentes
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do costado trincado . Esta embarcação, com Em segundo lugar, sabemos que este tipo de técnicas laboratoriais de diagnóstico que se
29 metros de comprimento e 40 remos, era bens eram frequentemente alvo de interven- empregam actualmente.
movida por 120 remadores e foi construída ções de vários tipos, destinadas normalmen- Continuemos o nosso passeio pela his-
para a celebração dos esponsais do príncipe te a tratar as deteriorações existentes, reavivar tória …
D. João com a Infanta de Espanha Carlota Joa- as cores originais ou adaptar às modas, ideo- Em 15 de Agosto de 1962, o Museu de Ma-
quina e da Infanta D. Maria Ana Vitória com o logias ou crenças vigentes em cada época a rinha inaugura as instalações que hoje conhe-
Infante de Espanha D. Gabriel, esponsais que decoração original. cemos, nomeadamente a ala lateral esquerda
se efectuaram em Maio de 1784 (Cutileiro, Não devemos esquecer que, a história da do Mosteiro dos Jerónimos, acompanhada
1998:67). Neste processo estiveram envolvi- conservação e do restauro evoluiu ao longo de um empreendimento arquitectónico des-
dos alguns dos melhores mestres em técnicas dos tempos com base em dois parâmetros tinado a albergar as secções técnica e admi-
decorativas portuguesas da época. Assim, da fundamentais: o plano ideológico, do qual nistrativa, por baixo do Planetário Calouste
obra de talha decorativa Gulbenkiam, e as Colec-
e do mobiliário da Ca- ções de Galeotas Reais e
marinha Real encarre- de Hidroaviões num pa-
gou-se o artista Manuel vilhão de características
Vieira, tendo como dis- específicas para o efeito.
cípulo Joaquim José de Nesta altura, a Colecção
Barros Laborão. No seu de Galeotas Reais sai do
trabalho resulta evidente depósito da Azinheira
a influência do afamado para ser exposta no novo
modelador milanês João espaço do Museu a ela
Grossi. Da obra de pintu- destinado. Uma vez co-
ra decorativa do exterior locadas no referido Pavi-
da embarcação encarre- lhão, seriam alvo de uma
gou-se o pintor Luís Bap- operação de restauro
tista sob a direcção de aprofundada que segun-
Inácio Meireles, pintor e do as nossas contas deve
dourador da Ribeira das ter tido lugar durante os
Naus, responsável pelos meses de Junho e Julho
trabalhos de pintura e de do referido ano (Cutilei-
ouro “escurecido” das Desenho original mostrando a decoração exterior do casco do Bergantim Real, nomeadamente da ro, 1998: 160-162).
embarcações reais. Do figura de proa. A partir desta data ape-
painel exterior da Camarinha e da paisagem formam parte os aspectos referidos anterior- nas conseguimos documentar o processo de
que decora a segunda sala deste habitáculo mente relacionados com o historial e as épo- restauro graças ao contacto estabelecido pes-
encarregou-se o pintor Pedro Alexandrino de cas a que o património em causa está asso- soalmente com o pintor Luís Cândido Teixeira,
Carvalho (Cutileiro, 1973: 27 e 28). ciado, e o plano técnico, protagonizado pela operário do Arsenal do Alfeite, e autor das in-
Ficamos assim a saber que a embarcação evolução da ciência, que envolve um contri- tervenções realizadas em 1974 e em 1987.
que se encontra actualmente no Museu de buto insubstituível do ponto de vista do co- Em entrevista efectuada no dia 22 de Maio
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Marinha tem mais de 200 anos de história nhecimento. Surgiu assim o famoso debate de 2007, na redacção da Revista da Armada ,
repleta de acontecimentos memoráveis, o que coloca sobre a mesa a delicada questão ficamos a saber que em 1974 foi realizada
que obriga a que o trabalho de conservação do equilíbrio entre a instância estética e a ins- uma intervenção de substituição do material
e restauro deva ser desenvolvido num diálogo tância histórica da obra no seu processo de lenhoso danificado pela acção do insecto xi-
constante com este objecto de extraordinário conservação e restauro (Macarrón de Miguel, lófago, no costado da Galeota de D. Carlota
interesse para a divulgação da história e da 1995: 13 e 47). Joaquina e no costado da Galeota do Inspec-
cultura marítima portuguesas. Por outro lado, a Ética da Conservação, que tor da Alfândega de Lisboa. No Bergantim
referimos no artigo publicado em Junho, fala- Real e na Galeota D. José I foi necessário
A CONSERVAÇÃO DO BERGANTIM -nos da importância de estudar e de documen- retirar o calafeto para evitar futuros destaca-
REAL AO LONGO DA HISTÓRIA tar as intervenções anteriores como fonte de mentos de camada pictórica, este elemento
conhecimento de dados fundamentalmente foi assim substituído por tiras de casquinha
A ausência de documentação sobre as in- históricos, artísticos, antropológicos e técni- (Cutileiro, 1998: 139-41).
tervenções de restauro realizadas nesta em- cos. Digamos que, cada uma das intervenções Em 1987 foi contratado novamente o pin-
barcação até 1962 impede-nos de aprofundar anteriores, de certa maneira antepassadas do tor Luís C. Teixeira para “refazer a totalidade
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este aspecto da história do Bergantim Real. restauro contemporâneo, podem ser conside- da decoração exterior do Bergantim Real” .
Duas pistas nos servem para poder iniciar a radas como marcas da história, marcas que Não tendo recebido nenhuma outra indica-
nossa viagem pela história. Em primeiro lugar um objecto de criação recente dificilmente ção relativamente ao trabalho solicitado e
sabemos que as Galeotas Reais se mantiveram poderá mostrar… perante uma embarcação que, segundo o en-
em funcionamento até ao advento da Repú- Evidentemente, quando da visita da Rainha trevistado, se apresentava em péssimo estado
blica (Cutileiro, 1973: 4). Nessa altura transi- Isabel II de Inglaterra a Portugal (18 de Feve- de conservação, foi preciso documentar ade-
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taram do telheiro da Junqueira para o depó- reiro de 1957), o Bergantim Real deverá ter quadamente todos aqueles fragmentos ainda
sito da Azinheira (Seixal) onde se mantiveram sido alvo de varias intervenções de embele- legíveis, com a finalidade de poder reproduzir
guardadas até Maio de 1962, tendo saído ape- zamento para tão aguardado acontecimen- fielmente esta realidade. Posteriormente “ti-
nas para acontecimentos pontuais como foi to. Mas, até agora, não foram encontrados rou-se tudo fora com um maçarico” . Entre
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o caso da visita de Isabel II de Inglaterra. Ao registos técnicos das mesmas. Perante uma 1987 e 1991 seria integralmente reproduzida
longo destas décadas, personalidades como situação como esta, apenas nos resta a op- a decoração do Bergantim Real com base na
o almirante Gago Coutinho manifestaram ção da análise da obra do ponto de vista da documentação criada pelo próprio pintor.
publicamente a sua vontade de salvar as ga- sua composição físico-química e da caracte- Do ponto de vista técnico era previsível
26 JULHO 2007 U REVISTA DA ARMADA