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A MARINHA DE D. JOÃO III (26)



                   O regresso aos mares da China
                   O regresso aos mares da China


               epois do desastre de Martim Afon-  riava formalmente uma ordem, instrução  cidos e possibilitaram medidas mais acer-
               so de Mello Coutinho, no Rio das  ou regimento, ou quando algo saía do es-  tadas e realistas. A carta de Martim Afon-
         DPérolas, junto à ilha de Taiman,  tritamente determinado. E, como é sabido,  so de Melo, escrita em Novembro de 1523
         a influência portuguesa a leste de Mala-  era neste espaço de dúvida que actuavam  (referida na anterior Revista) é um exemplo
         ca ficou reduzida às rotas das Molucas,  as invejas e cresciam as intrigas, cujo objec-  dessa informação, a que se seguem outras
         com todos os problemas de controlo que  tivo era sempre abalar a confiança do rei.   missivas enviadas por Jorge de Albuquer-
         são patentes nos conflitos entre capitães,   Aliás, o exercício de poder absoluto da-  que, capitão de Malaca. O rei tem, pois,
         tratados na “Marinha de D. João III (14)”.  quele tempo tinha outro inconveniente  a noção de que o valioso comércio com a
         Como tenho vindo a referir, é fácil de per-  inultrapassável: a certa altura só chegam  China estava comprometido por alguns
         ceber a dificuldade do exercício de                                          anos, e em carta que escreve a Pero
         um poder político absoluto e cen-                                           de Mascarenhas, em 1526, dá disso
         tralizado sobre a própria Índia, à                                          notícia. Recomenda-lhe, no entanto,
         distância de muitos meses de via-                                           que deve trabalhar para o recuperar,
         gem, com todas as vicissitudes da                                           fazendo chegar a Cantão a infor-
         mesma. E este foi um dos grandes                                            mação de que todas as afrontas le-
         problemas do império português,                                             vadas a cabo pelos portugueses lhe
         e tanto mais grave quando se vivia                                          causaram muito desagrado, e todas
         na Europa uma tendência crescente                                           foram, por si, severamente castiga-
         para a centralização política e para                                        das, desejando que tudo volte “ao
         o exercício do poder centrado na fi-                                         primeiro estado”, com grande paz
         gura do rei. É fundamental enten-                                           e amizade. Estranho, contudo, que,
         der a angústia de um rei que não                                            em 1531, dê a Manuel Botelho o car-
         sai de Lisboa, que actua rodeado                                            go de Capitão-Mor de uma armada
         de uma estrutura assente na fideli-                                          que deverá ir à China, com poder
         dade absoluta, e que tem de dirigir                                         especial para que tome posse de to-
         um império que se estende por de-                                           das as terras que achar ou aportar,
         zenas de milhar de quilómetros, até                                         e onde não exista já fortaleza por-
         lugares onde as suas ordens só che-                                         tuguesa, colocando os respectivos
         gam um ano a ano e meio depois.                                             padrões... etc.. Do texto da carta fi-
         Este foi um problema para o qual                                            camos com a impressão de que re-
         os reinos peninsulares, pioneiros                                           toma a ideia manuelina irrealizável
         da expansão ultramarina, nunca                                              e que continua sem uma noção clara
         acharam uma solução aceitável.                                              do poder do Império do Meio. Na
           No caso português a “exportação                                           verdade, essa armada não passará
         do poder” real para Goa ou para Ma-                                         da Índia porque o governador Nuno
         laca assentava sobre um conjunto                                            da Cunha ali a reteve, carregando -a
         complexo de normas e regimentos                                             e mandando-a regressar a Lisboa.
         que tinham o defeito de serem de-                                           Não permitindo que se cumprisse a
         masiado concretos e pouco flexíveis                                          ordem, prestou um serviço a el-rei,
         em face de circunstâncias quotidia-                                         a quem permanecia fiel da forma
         namente inesperadas. Filipe II de Es-                                       mais sublime.
         panha desenvolveu um princípio de   Armada de 1531.                           Nos mares da China, por essa al-
         relacionamento com os seus servido-  Livro das Armadas                      tura, já andavam mercadores por-
         res da Nova Espanha que ficou consagrado  ao rei as informações que se sabe serem  tugueses e asiatizados cristãos mestiços,
         numa frase, aparentemente contraditória,  do seu agrado, porque pouca gente tem a  que traficavam em juncos de sua proprie-
         de “obedescase pero no se cumpla”. Queria  coragem de lhe dizer a verdade, quando  dade ou estrangeiros, pelo menos desde
         isto dizer que a obediência era entendida  ela não é aprazível. O tempo de D. Ma-  que os próprios chineses tinham tomado a
         como uma postura global perante o rei, no  nuel foi, especialmente, marcado por esta  iniciativa de aparecer em Malaca, em 1527.
         sentido de que tudo devia concorrer para o  penúria informativa sobre o Oriente, e o  Na verdade, o comércio de Malaca era
         seu serviço, mesmo o não cumprimento de  soberano nunca se apercebeu de qual era  muito importante para Cantão e a proibi-
         uma ordem concreta dada a muitos meses  a verdadeira situação da Índia, de Malaca  ção não os servia de maneira nenhuma. Foi
         de distância. Este aparente desrespeito, não  ou da China. Sonhava com uma coisa que  neste contexto que se desenvolveu a rede
         era, afinal, outra coisa que a sublime fideli-  não existia, e as informações que lhe da-  comercial privada que culminou com o es-
         dade de proceder sempre conforme o que  vam eram sempre no sentido de continuar  tabelecimento dos portugueses em Macau,
         melhor  servisse Sua Majestade.    a alimentar o seu sonho. O que se passou  alguns anos mais tarde. É assunto que tem
           De certo modo, todas as monarquias da  com as esquadras que foram à China, em  sido superiormente explicado, nestas pági-
         Época Moderna (sécs XVI, XVII e XVIII)  1519 e em 1522, são um bom exemplo do  nas, pelo Almirante David e Silva e que eu
         aceitavam esta forma de proceder, mes-  desajuste de acções em face das circuns-  não repetirei, a não ser no exclusivamente
         mo quando não o explicitavam de forma  tâncias que nunca ninguém teve coragem  necessário à sequência destes artigos.
         tão clara como o fez Filipe II. O problema  para explicar a D. Manuel.                                Z
         residia sempre na dificuldade da prova de   Nesse aspecto, os primórdios da acção         J. Semedo de Matos
         fidelidade, quando uma actuação contra-  reinante de D. João III foram mais esclare-               CFR FZ
                                                                                     REVISTA DA ARMADA U AGOSTO 2007  11
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