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VALORES, IDENTIDADE E MEMÓRIA                                                               15


                      O Embaixador Itinerante



               s navios da Marinha, além da sua missão específica têm  há décadas. No momento em que pisam o convés da “Sagres”, não
               igualmente como função, inerente ao estatuto de NRP (Na-  são raras as vezes em que demonstram total incapacidade para reter
         Ovio da República Portuguesa), a representação de Portugal,  sentida comoção, resultando, do contacto fortuito com este simbó-
         nomeadamente no desempenho de missões que decorrem no quadro  lico pedaço de solo pátrio, um reforço da sua auto-estima e súbito
         das organizações internacionais, integrados em forças multinacio-  orgulho no País que os obrigou a partir.
         nais, ou, especialmente, aquando da visita a um porto estrangeiro.  Como já confessaram alguns diplomatas de carreira, quando se
           O espaço geoestratégico que Portugal ocupa no mundo cobre  prevêem recepções a bordo da “Sagres”, notícia que corre célere pelo
         uma área superior a 1,7 milhões de quilómetros quadrados. Nos  corpo diplomático e comunidade portuguesa locais, logo começam
         vértices desse imenso triângulo de Mar, assomam outros tantos pe-  a surgir, com apreciável antecedência, alusões à inclusão de nomes
         quenos núcleos terrestres habitáveis, situando-se o maior deles na  na lista de convites a emitir. Daí que o epíteto de Embaixador Itine-
         Península Ibérica, ao passo que os                                           rante, em grande medida reforça-
         outros dois, despontando em pleno                                            do aquando da viagem ao Médio
         Atlântico, moldam as regiões au-                                             Oriente em 1982, lhe assente como
         tónomas da Madeira e dos Açores.                                            Foto CTEN António Gonçalves  vela em veleiro. Nesta qualidade,
         Também por esta razão Portugal é                                             foram já inúmeros os Chefes de
         e tem sido Mar. No Mar reside par-                                           Estado, que um pouco por todo o
         te da sua génese, a ele se devendo,                                          mundo estiveram a bordo e visita-
         em boa medida, a sua existência                                              ram a “Sagres”. Como contraparti-
         enquanto entidade política e cul-                                            da da oportunidade proporciona-
         tural autónoma.                                                              da, também estes ilustres visitantes
           No passado, uma importante                                                 ajudaram, de forma indelével, a
         fracção da conquista do território                                           construir a lenda viva em que se
         português só foi possível porque                                             transformou este nosso navio.
         conduzida a partir do Mar. A capi-                                             Nas primeiras viagens de explo-
         tal, Lisboa, é exemplo disso. Como                                           ração da costa africana e dos ar-
         o são igualmente muitos dos luga-                                            quipélagos atlânticos, os audazes
         res que medram pela relativamen-                                             navegadores do Infante D. Hen-
         te extensa faixa costeira. Por seu                                           rique partiram ostentando a Cruz
         turno, os arquipélagos atlânticos                                            de Cristo nas velas das suas ilustres
         foram povoados com base neste                                                naves. Quase seis séculos volvidos,
         mesmo pressuposto. As gentes que                                             mais de 130 portos, espalhados pe-
         nesta orla e ilhas habitam, vivem há                                         las quatro partidas, tiveram já o
         séculos, em permanente e estreita                                            privilégio de ver surgir do Mar, tal
         comunhão com o Mar, para o me-                                               como outrora, a elegante silhue-
         lhor e para o pior.                                                          ta com a Cruz de Cristo debruada
           Foi a gesta de Marinheiros, cuja                                           a vermelho nas alvas velas, hoje
         origem se perde no tempo, que no                                             símbolo maior de um dos veleiros
         passado tornou possível a Expan-                                             mais conhecidos em todo o mundo.
         são, resultando como consequência                                            Por inúmeros factores, o ex-libris da
         concreta, nos primeiros alvores do                                           Marinha Portuguesa é igualmente
         século XVI, a afirmação de Portugal                                           reconhecido como uma das mais
         como primeira potência marítima                                              fortes e bem cuidadas imagens de
         à escala global. Se a muitos outros                                          marca associadas a Portugal. O es-
         povos o Mar Ocea no inicialmente                                             forço e dedicação de tantos, compa-
         intimidou, aos navegadores lusos o horizonte do Atlântico mais não  rável ao caçar da escota da vela grande com vento forte, permitiram
         fez do que definir o ponto de partida de um sonho e de uma aven-  que esse estatuto fosse sendo conquistado, passo-a-passo, ao longo
         tura, que eles sucessivamente ousaram concretizar.   de quase cinco décadas, ao qual deve ser ainda somada a excelsa
           Também pelos símbolos que ostenta, o navio-escola “Sagres” se  herança deixada pela antiga “Sagres”, que iniciou esta longa sin-
         encontra imbuído desta herança secular, cabendo-lhe uma quota-  gradura, nela fazendo os primeiros bordos. Por conseguinte, aquilo
         -parte, não negligenciável, no temperar da formação técnica e hu-  que foi alcançado não deverá alguma vez ser posto em causa, mas
         mana dos cadetes da Escola Naval, durante as longas e exigentes  sempre que possível dilatado.
         viagens de instrução. Sem que a maior parte deles disso se aperceba,   Como um sólido elo, o carácter sagrado do nome “Sagres”, tão-
         aos poucos vão-se dando mudanças de mentalidade, que a prazo  -somente estabelece a ligação perene entre o passado glorioso e o
         trarão, como resultado, gente melhor preparada e menos comple-  devir que todos anseiam consentâneo com o insigne legado que
         xada relativamente à décalage que ainda hoje subsiste entre Portugal  nos foi transmitido.
         e os países mais desenvolvidos.                       Reflectida pelo Mar, a silhueta da “Sagres” constitui a imagem em
           Para muitos dos nossos emigrantes, que pelas vicissitudes da vida  que todo um Povo e um País se reconhecem, como se fora um espe-
         se viram obrigados a buscar além-Mar o seu sustento, a preservação  lho, identificando nela os momentos relevantes que ao longo de sécu-
         da sua dignidade e um futuro melhor para os seus filhos, a visita da  los marcaram a já longa existência de Portugal. Por tudo isto, não se
         “Sagres” aos países de acolhimento constitui para eles um momen-  conhece local mais adequado, onde com orgulho possamos apreciar o
         to ímpar, pelo contacto que esta lhes proporciona com os marinhei-  desfraldar da Bandeira Nacional, que na singela adriça que faz retorno
         ros e os símbolos da Pátria, da qual alguns se encontram afastados  no penol da carangueja alta do navio-escola “Sagres”.  Z

         6  SETEMBRO/OUTUBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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