Page 53 - Revista da Armada
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Em fins de Outubro, quando os exércitos os 60 000 volumes da biblioteca da Ajuda, mau tempo, embora só uma das suas mui-
franceses se aproximam da fronteira portu- a mais importante de Portugal. tas velas tenha de regressar a Lisboa por es-
guesa, Londres mostra-se impaciente e co- A intenção era partir assim que a família tar em riscos de se afundar – uma outra foi
loca frente a Lisboa uma poderosa esqua- real embarcou, a 27 de Novembro, mas uma procurar abrigo na Inglaterra. Uma parte
dra de 9 naus, comandada pelo almirante tempestade com ventos fortes de sudoeste menor da esquadra, onde se incluía a nau
Sir Sidney Smith, em parte como resposta fecha a barra. Seguem-se dois dias de espe- Príncipe Real, segue directamente para a Baía,
à chegada de uma esquadra russa que não ra ansiosa, pois sabe-se que Junot se aproxi- enquanto a maior parte se dirige para a zona
se sabia ao certo como iria actuar. O secular ma da capital a marchas forçadas, deixando mais calma de Cabo Verde e só depois para
aliado lança então um aviso solene: caso a para trás as unidades mais lentas, com o ob- o Brasil, num ritmo que depende das condi-
família real não retire para o Brasil, a esqua- jectivo de capturar a família real. São dadas ções de cada navio.
dra devia retirar para a Madeira ou até para ordens para inutilizar as baterias das forta- D. João, ao chegar ao Brasil em Janeiro de
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Gibraltar, não se aceitando a sua continua- lezas da barra, para que os navios possam 1808 , confirma de imediato a abertura dos
ção em Lisboa, onde seria capturada pelos partir mesmo que os franceses as ocupem, seus portos ao comércio aliado e anula as leis
franceses. Era a tradicional política inglesa, mas não é fácil executar esta operação no que proibiam a criação de uma série de ins-
em que a prioridade ia para a preservação meio da grande confusão, até porque a Bri- tituições que passam a ser essenciais para o
da supremacia naval. Não se tratava de uma gada de Marinha tinha embarcado deixan- funcionamento da Corte, desde manufactu-
ameaça vã. Todos se lembravam da famo- do várias instalações sem guarnição. É duvi- ras, até tipografias. Em poucas semanas os
sa acção de Nelson em Copenhaga poucos doso saber o que aconteceria se os franceses órgãos centrais do Reino instalam-se em ter-
anos antes, quando uma esquadra britânica entrassem em Lisboa ainda com a esquadra ras de Vera Cruz: secretarias de estado, tribu-
aniquilou por completo a marinha dinamar- no rio, sem conseguir sair a barra. Sem dú- nais de várias instâncias, câmaras de comér-
quesa oficialmente neutra, apesar cio e indústria, escolas superiores,
da protecção das poderosas forta- academias, bibliotecas, bandas de
lezas em terra, bem mais eficazes música, fazenda, administração
que as baterias que defendiam a militar central, unidades milita-
barra do Tejo. A Inglaterra, em re- res, manufacturas, ordens religio-
sumo, não escondia que, se a Ar- sas, etc. Numa obra recente Patrick
mada portuguesa estivesse em Wilcken salienta que era a primeira
riscos de passar para as mãos dos vez que uma família real europeia
franceses, procuraria a sua des- se deslocava ao continente ameri-
truição preventiva. cano. Na realidade, era muito mais
Em começos de Novembro, do que isso: era a transferência em
D. João ordena que se apressem massa da Corte e dos principais
os preparativos para aparelhar órgãos do governo de um impor-
e armar os navios, continuando tante estado europeu para o outro
em segredo o embarque do muito lado do Atlântico, acompanhados
material encaixotado. A 12 desse pela totalidade da sua Armada em
mês, o exército de Junot parte de condições de navegar, por grande
Salamanca, descendo para sul ao parte da alta hierarquia militar,
longo da fronteira. Sete dias depois entra em vida, Junot mandaria de imediato ocupar os pela elite da sociedade e por muita da riqueza
Portugal por Alcântara, tomando o caminho fortes e baterias da barra, mas era duvidoso nacional. As consequências serão imensas.
de Castelo Branco. A 24 de Novembro, os que estas se conseguissem impor contra as Tendo em conta que tudo foi preparado
franceses estão em Abrantes e, por incrível cerca de 900 peças da esquadra. Havia ainda secretamente em poucas semanas e que se
que possa parecer, só então a Corte recebe a a possibilidade da esquadra britânica forçar tratou de uma operação de grande enver-
confirmação da invasão. D. João logo ordena a entrada na barra do Tejo e silenciar as ba- gadura sem precedentes, não podemos dei-
que comece o embarque das pessoas, para terias em terra (uma esquadra francesa fez xar de concluir que a travessia correu muito
que a esquadra possa zarpar a 27. Os dias justamente isso em 1831). melhor do que uma análise fria das proba-
seguintes são de grande confusão no cais O amanhecer de 29 de Novembro de 1807 bilidades deixaria prever. Uma das maio-
de Lisboa, onde se acumulam largos milha- foi recebido com um suspiro de alívio, pois, res esquadras portuguesas que alguma vez
res de pessoas e dezenas de milhares de cai- como que por milagre, a tempestade tinha atravessou o Atlântico na pior altura do ano,
xotes, no meio das chuvas torrenciais desse amainado e o vento mudado de direcção, não perdeu nenhuma vela e só uma teve de
inclemente Novembro. Os comandantes das sendo agora favorável à saída da barra. Em regressar a Lisboa, apesar da preparação de-
dezenas de velas tentam desesperadamente poucas horas a imensa esquadra faz-se ao ficiente da maior parte dos navios, do mau
colocar alguma ordem no caos e preparar os Atlântico, pouco antes da chegada dos Fran- tempo e do facto de irem sobrelotados. Foi
seus navios o melhor possível para a aventu- ceses. Junot é recebido por uma comissão uma anormal reunião de improvisação in-
ra que era atravessar o Atlântico num Outo- de boas-vindas em Sacavém (D. João tinha teligente e sorte, onde a maior de todas as
no adiantado e com mau tempo. ordenado que não se resistisse) e entra na sortes foi a inversão da direcção do vento na
A 27 de Novembro o príncipe regente capital às 7h de 30 de Novembro. Tivesse o noite de 28 para 29 de Novembro.
D. João, a Rainha D. Maria I, demente nos vento mudado um dia depois e poderia ser Z
seus 73 anos, e a restante família real, onde o desastre. Mesmo assim, navios isolados re- Prof. Doutor António José Telo
se incluía D. Carlota Joaquina, D. Pedro, D. Mi- tardatários ainda são alvejados pelas baterias Professor na Academia Militar
guel e as outras seis princesas, embarcam que os franceses rapidamente recuperam. OBS: Este texto serviu de base a uma intervenção oral de
nas naus que os aguardam. O núcleo da fa- A esquadra portuguesa é saudada pelas abertura solene do ano lectivo na Escola Naval a 29 de Novem-
mília real dividiu-se por três naus, a mais naus de Sir Sidney Smith que a esperam ao bro de 2007, pelo que as referências e notas de rodapé estão re-
duzidas ao mínimo.
importante das quais é a apropriadamente largo de Cascais e acompanhada por qua-
chamada Príncipe Real, que tem a respon- tro delas ao dirigir-se para a Madeira. Vai Nota
sabilidade de transportar D. João, os seus começar uma difícil travessia num Outono 1 Uma parte da esquadra chega à Baía a 22 de Janei-
dois filhos e a Rainha. No cais ficam aban- inclemente, com tempestades frequentes, ro de 1808. O príncipe regente D. João sai dessa cidade
a 27 de Fevereiro, numa esquadra formada por 4 naus
donados centenas de caixotes, alguns com a com navios mal preparados e sobrelotados. (1 delas inglesa), um brigue e um transporte, tendo de-
prata da Patriarcal e das Igrejas, outros com A esquadra não tarda a ser separada pelo sembarcado no Rio a 7 de Março.
REVISTA DA ARMADA U FEVEREIRO 2008 15