Page 57 - Revista da Armada
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da educação do futuro rei. Eram-lhe veda- rentes com as suas. Nomeou-o Presidente do No final do ano de 1907 a Família Real
das simpatias políticas, opiniões públicas e Conselho de Ministros em Maio de 1906, para deslocou-se para Vila Viçosa, onde normal-
emoções, não dava ordens ao governo, evita- formar governo com apoio do parlamento, mente passava o período de Natal. Ali pas-
va contactar directamente com as oposições, mas a situação política degradou-se muito, sou umas semanas, marcando o regresso a
etc.. Mas isto não o impedia de influenciar e, um ano depois, o Rei decidiu dissolver as Lisboa para finais de Janeiro e adiando-o,
sistematicamente o Ministério, podendo re- cortes, deixando João Franco governar em depois, para o dia 1 de Fevereiro. Partiram,
correr a situações excepcionais em que dis- ditadura até que houvesse condições para pois, de Vila Viçosa cerca das 11.30, cruzan-
pensava o poder legislativo, dissolvendo as realizar novas eleições. Foi debaixo de um do o Alentejo de comboio até à estação do
cortes e nomeando, provisoriamente, o seu ambiente tenso, com contestação nas ruas e Barreiro, de onde atravessaram para o Ter-
próprio governo. Dizia-se, nestas condições, com sinais preocupantes da proliferação de reiro do Paço no vapor D. Luís. No Cais das
que se governava em ditadura porque o exer- acções violentas utilizando explosivos, que Colunas esperavam-nos diversas entidades
cício era feito sem parlamento. Quer isto di- se passou o Verão e Outono de 1907. Deve (cerca de 80 pessoas) para cumprimentos ao
zer que, com todas as garantias dadas pela dizer-se que a contestação imputada aos re- Rei, seguindo o cortejo em coches abertos.
Carta, a capacidade prática de exercer o po- publicanos e, depois, a anarquistas foi, con- À frente, num landau, ia D. Carlos, a Rainha
der pessoal era muito grande, bastando que tudo, desenvolvida por todos os adversários D.ª Amélia, o Príncipe D. Luís Filipe e o
o fizesse com um tacto especial, cuja apren- de João Franco, sem excluir os dois principais Infante D. Manuel. Percorrendo a ala oeste
dizagem fazia parte da escola de todos os partidos monárquicos. Era vulgar que assim da Praça do Comércio, muito perto da actual
soberanos. Havia, contudo, uma estação dos correios, soou um pri-
incumbência do poder executivo meiro tiro. De imediato, Manuel
em que o rei interferia sempre com Buíça saca de uma carabina Win-
particular veemência, devido ao chester, que disfarçava sob um
carácter simbólico da sua figura, largo capote, e correndo da placa
enquanto representante superior central para a via, ajoelha e faz o
da nação: refiro-me, naturalmen- primeiro disparo que alcançou o
te, à política externa, sempre muito Rei na coluna vertebral, à altura
marcada pela relação pessoal entre do pescoço. Entretanto, do lado
os diferentes monarcas. Competia, das arcadas, vem Alfredo Costa
aliás, ao rei (pela Carta Constitu- que consegue saltar para o estri-
cional) dirigir as negociações po- bo do landau e atinge D. Carlos
líticas com as nações estrangeiras com um tiro de pistola. O Prínci-
e nomear os embaixadores. Evi- pe reagiu à emboscada e fez qua-
dentemente que as negociações só tro disparos com o seu revólver,
podiam fazer-se com a aprovação antes de cair morto com um feri-
do governo e a anuência do parla- mento de bala no peito e outro na
mento, tanto mais que as verbas cabeça. O tiroteio prolongou-se
implicadas estavam nas mãos des- por alguns minutos, com a reac-
tes dois órgãos de soberania, mas ção imediata da Guarda Munici-
os governos mudam e passam e pal que abateu os dois regicidas,
o rei fica. A coerência da política mas o acto estava consumado. O
externa dependia, essencialmen- Rei e o Príncipe estavam mortos
te, dele e D. Carlos fez valer o seu e a monarquia constitucional re-
prestígio internacional em toda a cebia o seu mais duro golpe de
linha, interferindo e ajudando na sempre: o golpe que verdadeira-
resolução de muitos problemas. mente a aniquilou.
Por vezes, mediando questões Depois do regicídio ficou pou-
onde Portugal não estava directa- co mais do que o medo ou o ter-
mente implicado. ror. Estou em crer que ninguém
Nos quase vinte anos em que queria acreditar que tinha acon-
reinou, a política nacional foi do- tecido aquilo que hoje nos parece
minada por dois grandes partidos: D. Carlos I a bordo de um cruzador russo. óbvio estar eminente e sobre que
o partido regenerador, mais con- Arquivo Marina Tavares Dias havia sinais evidentes. Mas a aná-
servador e avesso a grandes liberalidades; acontecesse, parecendo a todos que da agita- lise a posteriori é sempre mais fácil do que o
e o partido progressista, com uma política ção tirariam os seus proveitos. A ameaça tor- julgamento do momento. Numa primeira
mais radical, que hoje poderia dizer-se mais nou-se um instrumento normal do combate fase todos pareciam chocados ou surpreen-
à esquerda. Estes dois partidos alternaram político, não só para os que contestavam o didos, preferindo esquecer o que tinha su-
no poder durante quase todo o reinado, com regime, em si, como para todos os que discor- cedido. Chegou a dizer-se que tudo se resu-
pequenas excepções em que foram formados davam do Governo. E os níveis de violência mira a um acto isolado de Buíça e Costa. E à
governos de iniciativa régia. Na verdade, nas subiam vertiginosamente, sem que ninguém verdade sobreviveram os mitos adequados
últimas duas décadas tinham estado à frente se apercebesse que estava a acender um ras- à cor política de quem os divulgava, com
desses partidos as figuras de Hintze Ribeiro tilho sem controlo. Do lado do governo e versões para todos os gostos. Os monárqui-
(regenerador) e de Luciano de Castro (pro- do próprio Rei, havia como que um cerrar cos seguiram duas vias complementares:
gressista), que dirigiam duas extensas clien- de fileiras sobre esse tipo de agitação. E – é acusaram os republicanos da conspiração,
telas difíceis de saciar. A alternância era facil- bom relembrá-lo – a correspondência trocada e protegeram a imagem real transferindo
mente controlada pelo Rei, mas não trouxera entre os dois demonstra muito mais do que toda a carga negativa do regime para João
nenhum benefício ao país e impunha-se fazer solidariedade institucional entre órgãos de Franco: um cobarde, capcioso e fugidio, que
a reforma do sistema. D. Carlos acreditou que poder: D. Carlos está muito longe da neutra- nem sequer enfrentou o perigo no Terreiro
essa tarefa podia ser levada a cabo por um lidade que lhe reservava a Carta, assumindo do Paço. Os republicanos, pelo seu lado,
dissidente regenerador, de nome João Fran- de corpo e alma um projecto político em que realçaram o carácter repressivo do poder,
co, que lhe parecera ter ideias claras e concor- acredita e que promoveu pessoalmente. e apoucaram a figura do rei D. Carlos, co-
REVISTA DA ARMADA U FEVEREIRO 2008 19