Page 51 - Revista da Armada
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BICENTENÁRIO DA PARTIDA DA FAMÍLIA REAL PARA O BRASIL



                     O Dia em que o Atlântico mudou
                     O Dia em que o Atlântico mudou

                                                                                                     1ª Parte

         O DIA EM QUE O ATLÂNTICO           seu último ponto de apoio minimamente se-  a política da conciliação e do compromisso
         MUDOU                              guro na Europa e impor o “Bloqueio Conti-  para ganhar tempo. O príncipe D. João esta-
                                            nental” para asfixiar a sua economia. Sim-  va habituado a receber conselhos contraditó-
              e me pedissem para indicar o dia  plesmente, Londres domina todas as rotas  rios por parte dos chamados “partidos fran-
              exacto em que Portugal e o Brasil en-  oceânicas depois de Trafalgar, pelo que con-  cês e inglês” da administração, encabeçados
         Straram na Idade Contemporânea não  trola o comércio mundial - nestas circuns-  respectivamente pelo secretário de estado
         hesitaria: 29 de Novembro de 1807, há du-  tâncias, era a Europa que ficaria asfixiada e  António de Araújo de Azevedo e pelo mi-
         zentos anos.                                                                  nistro D. Rodrigo de Sousa Cou-
           Aparentemente é uma afir-                                                   tinho. Era igualmente normal o
         mação não fundamentada. As                                                    Conselho de Estado decidir hoje
         transições entre períodos histó-                                              um rumo, para optar por outro
         ricos são longas e graduais, me-                                              diametralmente oposto passados
         dindo-se por décadas e não por                                                uns dias. A aristocracia e a elite do
         dias. Assim é efectivamente, mas                                              Reino estavam divididas, quanto
         isso não impede que certas datas,                                             às simpatias e quanto ao caminho
         pela sua importância e significa-                                              a seguir, embora fosse evidente o
         do, se transformam em fronteiras                                              maior peso do partido inglês.
         simbólicas, em separadores de                                                   A solução que D. João esco-
         águas entre dois períodos e duas                                              lheu para gerir esta difícil situa-
         sociedades.                                                                   ção era a política da conciliação,
           Para entender o significado                                                 com o objectivo central de evitar
         particular deste dia, é necessá-                                              a beligerância. Compreende-se
         rio recuar um pouco. Em Agosto                                                que assim seja, pois a belige-
         de 1807, Napoleão ordena que se                                               rância representaria sempre um
         organize em Bayonne um corpo                                                  imenso sacrifício para o Reino,
         de exército com três divisões de infantaria e  não o contrário. Vai começar em fins de 1807  numa altura em que a França dominava o
         uma de cavalaria, comandado pelo general  a fase mais aguda do conflito para a hege-  continente, com o apoio da Espanha, e a In-
         Junot, chamado inicialmente de Corpo de  monia global, o período final de uma longa  glaterra dominava o mar. Alinhar pela In-
         Observação da Gironda e posteriormente de  rivalidade que marcou o século XVIII e de  glaterra representaria a certeza da invasão
         Armée du Portugal. As ordens que Junot rece-  uma guerra que tinha começado há 15 anos,  franco-espanhola, a que não se conseguiria
         be em meados de Outubro são para invadir  em 1792. Portugal é apanhado em cheio pela  resistir, como a recente Guerra das Laranjas
         Portugal, em colaboração com três divisões  fase mais intensa da tempestade.  (onde o invasor fora somente uma pequena
         espanholas. O exército de Junot escolhe um   Tudo se passa com a Corte portuguesa su-  parte do exército espanhol) tinha provado;
         caminho pouco normal: a estrada de Cas-  jeita a fortes e contraditórias pressões exter-  alinhar com a França, representaria a ime-
         telo Branco, o trajecto mais cur-                                             diata perda do comércio marítimo
         to para Lisboa, mas também um                                                 e, a prazo mais longo, a perda do
         dos piores. A razão da escolha é                                              Brasil, dos arquipélagos e das ou-
         simples de entender: o objectivo                                              tras colónias, ou seja, o desmoro-
         é apanhar directamente a mar-                                                 nar de Portugal tal como se tinha
         gem norte do Tejo, para tentar                                                edificado ao longo dos séculos.
         numa marcha forçada capturar a                                                A Inglaterra não escondia, aliás,
         família real na capital antes desta                                           que tinha expedições preparadas
         conseguir retirar.                                                            para ocupar os pontos mais sen-
           Ainda nesse mês de Agosto é                                                 síveis do Império. Mesmo depois
         entregue um ultimato ao Gover-                                                da retirada da Corte para o Brasil,
         no Português onde se exige que                                                Londres manda ocupar a Madei-
         declare guerra à Inglaterra até Se-                                           ra, Goa e Macau - imagine-se a si-
         tembro, feche os portos aos britâ-                                            tuação se a Corte tem ficado em
         nicos, prenda os seus comercian-                                              Lisboa. A beligerância, em resu-
         tes em Portugal, com a apreensão                                              mo, significava ter de optar entre
         dos bens e que a Armada portu-                                                um desastre e uma catástrofe.
         guesa se una à franco-espanhola.                                                Por isso mesmo, numa altura
         O ultimato estava redigido de modo a que  nas, com uma administração amplamente  de grandes divisões da elite sobre o cami-
         não fosse aceite, pois o que Paris pretendia  divida, servida por informações muito insu-  nho a seguir, se optou pela política da con-
         era a invasão e ocupação de Portugal. Para  ficientes, a pontos de em finais de Novembro  ciliação, na esperança de conseguir ganhar
         tal, é combinada com a Espanha a divisão do  ainda se desconhecer a declaração formal de  o tempo suficiente para que a tempestade
         reino em três partes pelo Tratado de Fontai-  guerra feita pela França a 23 de Outubro. Era  passasse. A historiografia liberal em peso,
         nebleau, assinado a 29 de Outubro.  um reino debilitado e enfraquecido, que des-  desde Alexandre Herculano, a Luz Soriano
            Napoleão pretende retirar à Inglaterra o  de há pelo menos seis anos tinha adoptado  e, sobretudo, Oliveira Martins, condenaram
                                                                                     REVISTA DA ARMADA U FEVEREIRO 2008  13
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