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D. Carlos I
D. Carlos I
O Rei, o Artista e o Homem de Ciência
l-rei D. Carlos nasceu no palácio da estava destinado, com aspectos exclusivos in- que ainda hoje pareceriam inusitados. É cos-
Ajuda a 28 de Setembro de 1863, sen- contornáveis, como eram a exigência de pa- tume apontar-se como primeira desgraça da
Edo filho de D.ª Maria Pia de Sabóia e ridade no escalão de nobreza e a opção reli- sua magistratura a situação criada pelo ulti-
de D. Luís de Bragança, o 32º rei de Portugal. giosa católica romana (devendo notar-se que matum inglês de 11 de Janeiro de 1890, sem
O Doutor Magalhães Coutinho assistira sa- uma boa parte das monarquias europeias notar que ocorreu pouco mais de dois me-
biamente ao parto da rainha, e cerca da uma eram protestantes). O futuro rei de Portugal ses depois da morte de D. Luís I, e escassos
e meia da tarde anunciava à corte o nasci- casou, portanto, de acordo com os cânones quinze dias após a cerimónia oficial de jura-
mento de um belo rapaz, sossegando os ha- da época e, cerca de um ano depois, nascia mento que marca o início do seu reinado. E
bituais temores de qualquer dificuldade de o seu primeiro filho, consubstanciando-se a a acusação é tão injusta, quanto o incidente
sucessão. As damas chegavam-se ao altar formação da família primeira da hierarquia decorre de uma má avaliação internacional
dando graças a Deus e a artilharia do reino das famílias portuguesas, garantindo a con- dos governos anteriores, que não mediram
anunciava a boa nova ao povo que convenientemente a relação inter-
se juntava em frente ao palácio para nacional de forças e o alinhamento
dar alvíssaras ao soberano feliz. Foi colonial decorrente da Conferência
baptizado na igreja de S. Domingos de Berlim. Longa seria a análise das
a 19 de Outubro, recebendo o nome circunstâncias em que o país lançou
completo de Carlos Fernando Luís a ideia de uma soberania sobre o
Maria Vítor Manuel Rafael Gabriel território africano que unia Angola
Gonzaga Xavier Francisco de Assis a Moçambique, consubstanciada no
José Simão. chamado “mapa cor-de-rosa”. Tão
Recebeu uma educação semelhan- longa quanto a energia com que o
te à que era normal ser dada a todos projecto foi rejeitado pela Grã Bre-
os descendentes de reis, destinados tanha, criando as condições para os
a ocupar um trono e a dirigir os su- incidentes militares que levaram ao
premos destinos da nação: os mes- memorandum do representante britâ-
tres visitavam-no no próprio palácio nico, transfigurado depois como um
da Ajuda, onde as lições eram parti- ultimatum, sem que tivesse assumido
lhadas com o infante D. Afonso, seu exactamente essas proporções. Deve,
irmão, e tinham uma vincada ver- contudo, dizer-se que a resolução do
tente humanística, relacionada com diferendo e a consolidação do impé-
as funções que viria a desempenhar. rio português em África – pratica-
Começavam cerca das oito da ma- mente nos moldes em que existiu até
nhã e prolongavam-se até ao final 1974 – deve-se à intensa e subtil ac-
da tarde, durante toda a semana. Só ção diplomática de D. Carlos. E não
o Domingo poderia ter alguns mo- é verdade que esta acção se tenha
mentos de distracção intervalados, pautado pela sujeição permanente
contudo, com pequenos períodos de aos interesses britânicos, como disse-
estudo quando assim era necessário. ram as oposições políticas do tempo
D. Carlos aprendeu a falar fluente- (monárquicas e republicanas).
mente em português, espanhol, fran- O regime monárquico constitu-
cês, inglês, alemão e italiano, rece- cional, vigente durante quase todo o
bendo ainda lições de latim e grego; século XIX, teve como primeiro su-
estudou história, ciências naturais, porte a Carta Constitucional dada por
matemática e filosofia; completando D. Pedro IV, em 29 de Abril de 1826,
a sua formação académica com estu- D. Carlos I. alterada pelas reformas de 1852, 1885
dos de direito, ciência política e administra- tinuidade dinástica e repetindo um ritual e 1896. No seu artigo 71º, dizia ela que: “O
ção pública num regime monárquico consti- institucional que devia passar de geração em poder moderador é a chave de toda a orga-
tucional, como era o português. A arte teve geração. Decorridos que são quase cem anos nização política, e compete primitivamente
ainda um papel especial na sua educação, sobre a implantação da República, e no ver- ao Rei, como chefe supremo da nação, para
nomeadamente a música e a pintura, mere- tiginoso mundo do século XXI, esta questão que incessantemente vele sobre a manuten-
cendo, esta última, um lugar de destaque na passa despercebida e pode julgar-se (inadver- ção da independência, equilíbrio e harmonia
carreira do homem e do monarca. tidamente) de menor importância, mas ela é dos poderes políticos”. Esta questão foi alvo
Com a idade de 22 anos, o Príncipe con- central para a compreensão dos problemas de particulares estudos desenvolvidos por
traiu matrimónio com Amélia de Orléans, que afectaram as duas últimas décadas da eminentes juristas (v.g. Lopes Praça, Direi-
filha do Conde de Paris e descendente em Monarquia Portuguesa. to Constitucional Portuguez, Coimbra, 1880),
linha directa de Louis Philippe, rei dos fran- que definiram o essencial deste “poder mo-
ceses. A escolha foi feita pelo próprio D. Car- O REI derador” como uma “força neutral”, à parte
los, mas é importante realçar como a relação D. Carlos foi aclamado no final do ano dos restantes poderes (executivo, legislati-
não era, de todo, ocasional, fruto de um ena- de 1889, dando início a um dos mais con- vo e judicial), e colocada no seu centro, sem
moramento espontâneo dentro de um meio troversos reinados da história portuguesa. nenhum interesse que não uma arbitragem
social alargado que ambos frequentassem. Certamente aquele em que a figura do rei equilibrada. E durante todo o século XIX foi
Havia condicionantes próprias, inerentes às foi mais contestada na via pública, com in- sendo elaborado um padrão de comporta-
funções de chefia do Estado, a que o Príncipe sultos injustificados e excessos de linguagem mento, omnipresente em todos os aspectos
18 FEVEREIRO 2008 U REVISTA DA ARMADA