Page 59 - Revista da Armada
P. 59
balho de arte. O curioso acabou-se, e agora é nhece uma maior atenção aos estudos ocea- do dia 27 contavam-se por mais de uma cen-
necessário apontá-lo entre os pouquíssimos nográficos, cuja utilidade imediata poderia tena de pescadores mortos, entre Gaia e Vila
que neste país de costa, verdadeiramente, significar um incremento das pescas. Os fun- do Conde. Foi nesta altura que decidiu a cria-
sentem a marinha, e entre os raros que na dos marítimos da costa portuguesa, alternan- ção do Real Instituto de Socorros a Náufragos,
exposição se esforçam por pintar em portu- do a plataforma continental com profundos tutelado pela Rainha D.ª Amélia.
guês. Os seus dois pasteis de lezíria revelam o vales submarinos, tinham capacidades inex- As campanhas começaram em 1896, na
olho afeito, não a perceber objectos, mas con- ploradas, que era importante aproveitar, mas baía de Cascais, estuário do Tejo, zona dos
juntos, e a guiar-lhe o pincel por fundos de transição para a vasa
um caminho de nuances, donde de largo e nos vales submarinos
os nossos «pastelistas» mais há- do Cabo Espichel. E seguiram-se
beis raro têm conseguido tirar a religiosamente, todos os anos até
limpo.” Melhor elogio não seria à sua morte, com estudos sobre
possível. Sobretudo vindo de um diversas espécies marinhas, al-
declarado inimigo político. gumas das quais absolutamente
desconhecidas da ciência, como
O HOMEM DE CIÊNCIA aconteceu com a espécie Odontas-
É recorrente dizer que a pai- pis nasutus Bragança, um esqualo
xão de D. Carlos pelos estudos que nunca tinha sido identifi-
de zoologia e oceanografia estão cado e que mereceu o nome de
intimamente ligados à sua pai- Bragança pelas circunstâncias
xão pela natureza, que aparece em que foi descoberto. No ano
tão óbvia na sua arte. E, efectiva- de 1898 foi pela primeira vez em
mente, as primeiras referências campanha para o Algarve, com o
que nos mostram a sua curiosi- objectivo de estudar o movimen-
dade por este tipo de assuntos Iate Amélia II. to dos cardumes de atum que
D. Carlos - pastel sobre cartão.
remontam ao período em que passavam naquela zona da costa
contava apenas 13 ou 14 anos, quando co- era importante que se conhecesse com rigor portuguesa. A importância económica dessa
meçou a remeter os exemplares das suas ca- as condições em que vida, deslocamento e espécie merecia, só por si, toda a atenção, so-
çadas para o Museu de Lisboa, organizando procriação das espécies piscícolas de interes- bretudo, se fosse possível identificar quais as
para ele próprio, no Palácio da Ajuda, um se económico, observado a melhor forma de condições que determinavam a sua migração
museu ornitológico que nunca deixou de en- efectuar as capturas e adaptando-a a embar- e traziam os imensos cardumes até às alma-
riquecer com melhores exemplares. Um dos cações de maior capacidade. Eventualmente, dravas algarvias. A partir de então, todos os
seus mestres e companheiro das campanhas aproveitando as novas formas de propulsão. anos reservava um pequeno período para se
ocea nográficas dos últimos anos da sua vida, D. Carlos sempre observou com atenção a deslocar até essas águas do sul, verificando e
o professor Alberto Girard, referiu no elogio prática costeira da pesca – e isso é notório na registando dados, e procurando tirar conclu-
académico proferido em 1909 na Academia sua pintura – mas é provável que a tragédia sões. Acabou por publicar um trabalho sobre
das Ciências que, com pouco mais de vinte ocorrida na madrugada de 27 de Fevereiro esse assunto, embora com o reconhecimento
anos, já tinha escrito um tratado sobre de que os dados recolhidos eram insu-
as aves de Portugal, que não publicou ficientes e não permitiam mais do que
de imediato. Foi-o refazendo, a pouco conjecturas. Não é possível reunir no
e pouco, até se decidir pela versão que espaço curto deste texto os resultados
levou ao prelo em 1893, com um título exaustivos de todas as campanhas ocea-
simplificado de Catálogo Illustrado das nográficas levadas a cabo pelos sucessi-
Aves de Portugal. Ilustrada por Casa- vos iates “Amélia”, que foi substituindo
nova, dele constam 212 exemplares de com um intuito específico de melhorar
diferentes aves, devidamente classifi- as condições de trabalho e investiga-
cadas, com os nomes conhecidos (nos ção, mas pode ter-se uma ideia da sua
casos possíveis, em português, francês, importância lembrando o impacte que
espanhol, inglês, alemão, italiano e rus- tiveram em diversos fóruns científicos
so), concentração em Portugal, hábitos internacionais.
de nidificação e arribação, bem como A paixão pelas Ciências Naturais e
indicação dos exemplares que tinha a dedicação ao estudo do mar foi mais
na sua colecção privada. E, para que se uma das múltiplas vertentes da cravei-
entenda a verdadeira dimensão desta ra intelectual do Rei, resultante, cer-
obra, digamos, de juventude, citamos tamente, da dedicação ao estudo e da
um trecho do prefácio de uma recente formação que lhe foi proporcionada
edição: “nem antes nem depois de 1903 pelas lições dos melhores mestres. Não
foi levado a cabo, em Portugal, um estu- havia nada na sua actividade como go-
do ilustrado tão completo e tão perfeito vernante que D. Carlos não conhecesse
sobre as aves que vivem, nidificam, ou ou que não estivesse habilitado a com-
arribam no nosso País.” D. Carlos no tombadilho do iate Amélia II. preender e a estudar. Faltava-lhe, talvez,
As maiores realizações científicas o conhecimento suficiente dos homens.
feitas sob a sua orientação e direcção seriam, de 1892, nas praias do norte do país tenha Não aquele que se pode aprender em lições
contudo, no campo da oceanografia e da ic- despertado uma maior sensibilidade para a de mestres ou livros, mas o que decorre da
tiologia (estudo dos peixes), nas campanhas actividade piscatória. Nesse dia, as embarca- vida vivida, fora da redoma da corte. Foi essa
levadas a cabo entre os anos de 1896 e 1907. ções em faina foram surpreendidas por uma carência que lhe foi fatal.
Sabe-se da sua proximidade com o mar e do alteração meteorológica brusca, com o vento Z
amor às actividades náuticas, desde muito a rondar inesperadamente e a arrastar para J. Semedo de Matos
cedo, mas só nos anos noventa se lhe reco- a costa centenas de embarcações. Na manhã CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U FEVEREIRO 2008 21