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A MARINHA DE D. JOÃO III (31)
Anos difíceis na Índia
Anos difíceis na Índia
A se adivinhava renhido. Ainda houve tempo recebido a notícia da retirada dos turcos, mas
Marinha de D. João III deixou, no seu vora e gente de armas para um combate que velas, tomando a direcção do norte. Já tinha
número 18, os acontecimentos da Ín-
dia, por alturas do primeiro cerco de para mandar a Goa uma embarcação a pedir a fortaleza estava em grande penúria e não ti-
Diu, no final do governo de Nuno da Cunha, reforços, aproveitando o amainar da mon- nha feito a paz com Coge Çofar. Embora a ur-
aproveitando a presença de Martim Afonso ção, mas Nuno da Cunha também não tinha gência da viagem fosse muito grande, Garcia
de Sousa para estabelecer uma ponte com os condições de acudir a Diu, tanto mais que de Noronha parecia que não ter grande pressa
desenvolvimentos que permitiram o estabe- terminava o seu mandato como governador de chegar. Diz-nos Gaspar Correia que, apesar
lecimento dos portugueses no Brasil. Diu – e era substituído por Garcia de Noronha. Da do vento favorável e tempo excelente, fundea-
como foi dito na altura – estava na dependên- valorosa defesa de Diu nos dá notícia o relato va muito antes do pôr do sol e dormia noite,
cia do reino de Cambaia, constituindo uma pormenorizado de Lopo de Sousa Coutinho, levantando-se “ao outro dia com duas horas
baluarte importantíssimo na defesa da nave- que nela participou defendendo a muralha de sol”. Passou por Dabul, Chaul e Baçaim,
gação de acesso ao respectivo golfo por detendo-se em cada uma delas mais do
dar abrigo a embarcações que saíam em que era preciso, acabando por se deixar
situação táctica favorável (a barlaven- surpreender por um temporal de norte,
to). Foi por essa razão que o rei de Por- quando tentava atravessar o Golfo de
tugal deu instruções específicas de ocu- Cambaia, em direcção a Diu. Foi o pior
pação, tarefa em que se empenharam os começo de um governo que já tinha
governadores Lopo Vaz de Sampaio e dado outros sinais de falta de energia e
Nuno da Cunha, e que foi concretizada empenho nas coisas da guerra no mar na
por Martim Afonso de Sousa, nas con- Índia. Não houve muitos estudiosos que
dições referidas. No Verão de 1538, con- dedicassem atenção ao vice-reinado de
tudo, a coabitação entre portugueses e D. Garcia de Noronha, limitando-se a co-
locais deteriorou-se consideravelmente, mentários sobre aquilo que sugerem os
sobretudo porque Coge Çofar se sentiu próprios cronistas, e que dizem respeito
liberto dos constrangimentos que o ti- a uma administração negligente, obceca-
nham obrigado a ceder a posição. Coge da em amealhar benefícios para o pró-
Çofar fora o capitão de Diu antes da prio. Em Diu, por exemplo, substituiu
ocupação portuguesa e cedera a posi- António da Silveira por Diogo Lopes de
ção, na esperança de uma aliança mili- Sousa, e manteve com ele uma querela
tar contra a ameaça Mogol a Cambaia, prolongada, por não querer deixar-lhe
que não se concretizou, de forma que os recursos financeiros necessários ao
cedo pensou em novos alinhamentos pagamento da guarnição; e esta situação
e estratagemas que pudessem desalojar repetiu-se em Baçaim, com Rui Louren-
os portugueses da fortaleza que, entre- ço de Távora, que acabou por ficar sem
tanto, tinham construído na ponta de as verbas necessárias para abastecer a
Diu. Em Agosto de 1538, começaram os praça e pagar ao pessoal, que ali ficou
portugueses a ver um inusitado agru- “ao Deus dará” durante um ano de con-
pamento de cavaleiros e infantes, nos tínua guerra. Pouco ou nada conseguira
limites da cidade, levando a que o capi- fazer na Índia que não fosse o levantar
tão António da Silveira tomasse precau- problemas por causa de dinheiro, pare-
ções redobradas quanto às saídas para D. Garcia de Noronha, Vice-Rei da Índia. cendo a todos que era apenas isso que o
fora da fortaleza e às pequenas tarefas Gaspar Corrêa – Lendas da Índia. motivava.
de recolha de água e lenha, que sempre aca- do lado do rio, testemunhando os sucessivos No princípio do ano de 1540 o Vice-Rei
bavam em escaramuças, com perdas de vidas momentos de aperto e as dificuldades extre- adoeceu gravemente, o vazio de poder susci-
humanas. E foi na sequência de uma dessas mas que a reduzida guarnição passou até à tado pela sua forma de actuação ganhara tais
escaramuças que foi preso e interrogado um retirada dos turcos. proporções que chegou a pensar-se eleger al-
prisioneiro, que deu a saber as verdadeiras Garcia de Noronha chegara a Goa em Se- guém que exercesse a governação, alegando
intenções de Coge Çofar, e porque estava tão tembro de 1538 para tomar posse do cargo de a sua incapacidade. Foi D. João D’Eça, capi-
agitado e agressivo, sabendo que a passagem Vice-Rei, contando já com a provecta idade de tão de Goa, que se opôs a tal atitude, repu-
da monção traria reforços de Goa que lhe fa- quase setenta anos. Era sobrinho de Afonso de tando-a de mau serviço ao Rei e desrespeito
riam pagar aquela ousadia. O mouro foi in- Albuquerque e estivera na Índia entre 1511 e pela vontade. Garcia de Noronha morreu a 4
terrogado pelo próprio António da Silveira 1515, servindo depois em África com lealda- de Abril de 1540, abrindo-se, então, as cartas
e revelou que estava pronta em Aden uma de e empenho, parecendo a todos que mere- de sucessão determinadas por D. João III, de
esquadra turca, que se esperava chegasse a cia os benefícios do governo da Índia, em que, que a primeira apontava o nome de Martim
Diu em poucos dias, e com a qual os guze- certamente, se empenharia com a mesma di- Afonso de Sousa, já embarcado para Lisboa
rates esperavam expulsar os portugueses. A ligência que pusera em todos os outros feitos há um ano atrás. Foi aberta a segunda carta,
notícia não colheu de surpresa a guarnição de da sua vida. Segundo relatam os cronistas, teve que indicava o nome de Estêvão da Gama,
Diu nem o seu experimentado capitão, mas grande dificuldade em reunir a gente necessá- recém-chegado de Malaca, e foi ele que as-
era, deveras, preocupante porque não havia ria para acudir a Diu, e foi necessário recorrer a sumiu o governo da Índia.
condições para uma defesa sólida da cidade: vários expedientes financeiros que não devem Z
a muralha tinha várias fragilidades que nunca ter sido do seu especial agrado. Mas, nos finais J. Semedo de Matos
foi possível suprir e, sobretudo, faltava pól- de Novembro de 1538 largou de Goa com 90 CFR FZ
22 FEVEREIRO 2008 U REVISTA DA ARMADA