Page 94 - Revista da Armada
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BICENTENÁRIO DA PARTIDA DA FAMÍLIA REAL PARA O BRASIL
O Dia em que o Atlântico mudou
O Dia em que o Atlântico mudou
Conclusão
UMA MUDANÇA DE GRANDE menos 15 000 portugueses, com pelo menos muitos acompanhados pelos familiares. Era o
ENVERGADURA 6000 passageiros. É igualmente sabido que, nos que de melhor havia na sociedade portuguesa
dias subsequentes à partida da esquadra umas de então e, salvo raras excepções, era o sector
A largas centenas de portugueses fugiram em dirigente a todos os níveis.
esquadra que sai da capital comanda-
da por Manuel Souto-Maior representa pequenas embarcações e foram buscar refúgio
É ainda mais difícil avaliar a riqueza trans-
nas velas britânicas que pairavam ao largo de portada, mas ela é muito substancial, pois in-
tudo o que a Armada tem capaz de na-
vegar e transporta a elite da sociedade, as suas Cascais, de onde seguiram para a Inglaterra e, clui o Tesouro Real, o ouro da Fazenda (não
principais instituições, bem como uma parte posteriormente, para o Brasil. se faziam praticamente pagamentos há meses
substancial da sua riqueza. É forma- para permitir a acumulação do me-
da por 8 naus, 4 fragatas, 5 brigues, 3 tal), os haveres das dezenas de ins-
escunas e 3 charruas, num total de 23 tituições que embarcaram e as jóias,
velas da Armada, com 978 peças de objectos de arte, metais preciosos e to-
vários calibres e uma guarnição de dos os bens de valor que os milhares
cerca de 8 000 homens. É o grosso da de notáveis embarcados conseguiram
Armada, embora em Lisboa ainda fi- colocar nos navios. Alguns autores
quem, incapazes de navegar, 4 naus, falam em 200 milhões de cruzados;
5 fragatas e 1 corveta, para além de as avaliações mais modestas men-
navios menores. As unidades da Ar- cionam 80 milhões. Se for aceite este
mada são acompanhadas por umas número menor isso representa dois
dezenas de navios mercantes. Grande anos de exportações nacionais, o que,
parte da restante marinha mercante transformado em valores actuais,
integrava um grande comboio que seria a mesma coisa que ver sair de
nesta altura transportava produtos do Portugal num só dia, para não mais
Brasil para Portugal, sendo de imedia- voltar, 60 000 milhões de euros em va-
to desviado para Londres. lores de 2005, ou seja, quase metade
As 8 naus que partem são todas de do PIB a preços de mercado.
construção nacional, com seis lança- O mais importante para o futu-
das à água no Arsenal da Marinha ro do Antigo Regime, porém, não
em Lisboa e duas feitas no arsenal era súbita transferência para o Bra-
da Baía; são navios relativamente sil da elite nacional acompanhada
antiquados, com uma média de ida- por uma grande parte da riqueza. O
de de 32 anos, sendo as mais antigas mais importante era o fim imediato
de 1763 (44 anos); a única nau que dos circuitos económicos internacio-
se pode classificar como moderna é nais em que se baseava o Antigo Re-
a Príncipe do Brasil, que data de 1802 gime. Em começos do século XIX, de
(do Arsenal da Baía). Só uma das acordo com as estatísticas de Adrien
naus tem 90 peças (a Príncipe Real), Balbi, cerca de 6% do comércio do
contando as restantes com 74 (4 naus) Atlântico passava por Lisboa, uma
ou 64 peças (3 naus) – nenhuma, em percentagem muito substancial para
resumo, se pode classificar como na- o tamanho do Reino. Esse comércio
vio de linha de primeira categoria, era a grande fonte de rendimento da
dentro dos parâmetros da marinha coroa e o segredo do poder de Portu-
britânica. gal. Anualmente chegavam a Portu-
É impossível uma avaliação rigoro- gal cerca de 28 milhões de cruzados
sa do número de passageiros que a es- de produtos do Brasil (o ano que ser-
quadra transporta, mas é certo que os ve de referência é 1796). Portugal ex-
navios iam sobrelotados, até porque portava então para a Europa cerca de
não esperavam qualquer combate. O 40 milhões de cruzados, mas 24 mi-
número que normalmente se avan- lhões (60% do total) eram produtos
çava era de 15 mil passageiros, mas do Brasil, só 16 milhões correspon-
mais recentemente é normal apontar dendo a vinhos e outros produtos
para menos: 10 mil ou até mesmo 6 do Reino ou do restante império. Ao
mil – isto numa altura em que Lisboa mesmo tempo, Portugal enviava para
tinha 200 mil habitantes e o Rio cerca de 43 mil. O que interessa nos passageiros da esquadra o Brasil (sempre em números de 1796) 17 mi-
Possivelmente uma das razões desta divergên- não é tanto o seu número, mas a sua qualidade. lhões de cruzados, mas mais de metade eram
cia é o facto de não ser fácil distinguir entre a Com a Corte seguia grande parte da nobreza mera reexportação de produtos da Europa. O
guarnição (cerca de 8 000 pessoas) e os passa- titular, da alta hierarquia militar, do alto clero, comércio com o Brasil, em resumo, represen-
geiros. Não andaremos longe da verdade se diplomatas, lentes, altos funcionários, os me- tava o grosso dos produtos que Portugal tro-
dissermos que a esquadra transportava pelo lhores técnicos, empresários e comerciantes, cava com o exterior. O Reino desempenhava
20 MARÇO 2008 U REVISTA DA ARMADA