Page 95 - Revista da Armada
P. 95

no essencial o papel de um grande entreposto,   Basta recordar a situação de então para o  dos oficias do Exército. Mas o Exército, esse fi-
         que recebia da América e remetia para a Euro-  compreender. Até 1815 Portugal esteve mer-  cava no essencial no Reino, embora sem parte
         pa e recebia da Europa e remetia para a Amé-  gulhado nas guerras napoleónicas, com a Cor-  da sua alta hierarquia. A primeira preocupa-
         rica – em qualquer dos sentidos os produtos  te no Brasil e o seu território europeu a lutar  ção de Junot foi a de desarmar esta força, ten-
         de Portugal continental eram a minoria. Para  desesperadamente contra as sucessivas inva-  do começada por enviar cerca de um terço do
         compreender a importância disto, basta referir  sões francesas. Essa luta na Europa era dirigi-  total para França (a Legião Lusitana, ao serviço
         que o comércio com o Brasil produzia mais de  da superiormente por um comando britânico,  de Napoleão) e procedendo de seguida à dis-
         dois terços do total das receitas do erário régio,  feita através de uma força armada anglo-lusa  solução das restantes unidades. Significa isto
         principalmente através das alfândegas e que  financiada pela Inglaterra e por ela criada, co-  que quando se dá o levantamento nacional
         grande parte da “aristocracia mercantilizada”  mandada, treinada e armada. A regência em  contra os franceses, em meados de 1808, não
         estava de alguma forma ligada às companhias  Lisboa estava em tudo dependente da Ingla-  há Exército nacional constituído e a Armada
         monopolistas criadas pelo Estado no período  terra e Wellington era quem na realidade man-  não está no Reino. As Juntas vão improvisar
         do Marquês de Pombal.              dava em Portugal. Pensar que nestas condições  à pressa um novo exército e, como mais de
           O que acontece em 1807 é que tudo isto ter-  se podia voltar atrás e tornar a fechar os por-  metade do antigo corpo de oficias está fora
         mina de repente. D. João tinha já negociado a  tos do Brasil, é de um total irrealismo. Nem a  de fronteiras (no Brasil ou em França), bem
         abertura dos portos brasileiros como forma  Inglaterra nem o próprio Brasil o permitiriam  como grande parte da nobreza titular, recorre
         de obter o apoio inglês para a retirada e, ao  e Portugal precisava da ajuda britânica para  a nomeação de novos oficiais a partir dos sec-
         desembarcar no Rio confirma-o por decreto.  sobreviver.                tores que se destacam no levantamento contra
         Não era possível outra solução. Lon-                                        os franceses.
         dres jamais permitiria a continuação                                          O novo Exército português que se
         do comércio entre o Brasil e Portugal                                       ilustrará em inúmeros combates até
         ocupado pelos franceses. Em poucas                                          1814, será pago, formado e enqua-
         semanas cerca de duas centenas de                                           drado pela Inglaterra, que toma como
         casas comerciais “amigas” (esmaga-                                          base os oficiais nomeados pelas Juntas
         doramente inglesas, mas algumas                                             e não o corpo de oficiais do Antigo Re-
         americanas) instalam-se nas cidades                                         gime. Era inevitável que o novo corpo
         do Brasil e a maior parte das expor-                                        de oficiais do Exército, proveniente de
         tações é desviada para Londres. Do                                          sectores sociais diferentes do passado,
         ponto de vista do Brasil a diferença                                        seleccionado depois pela Inglaterra,
         não é muita, mas do ponto de vista                                          com critérios de promoção que de-
         de Portugal é imensa: o comércio do                                         pendiam essencialmente do mérito re-
         Brasil com a Europa passa no futuro                                         velado no campo de batalha e não do
         a seguir no essencial via Londres, fi-                                       nascimento, formado nas escolas bri-
         nanciado pela Inglaterra e transpor-                                        tânicas e temperado em campanhas
         tado nos seus navios e não via Lisboa e trans-  Londres pagava a guerra na Península (tan-  contra os melhores exércitos da Europa que
         portado em navios nacionais.       to a Portugal como à Espanha), mas recebia  o levaram até Bordéus e Toulouse, estivesse
           Desaparecia numa penada a principal fonte  em troca a abertura do mercado de todo um  influenciado pelas ideias da liberal Inglater-
         de receitas do Antigo Regime e a grande base  continente (a América Latina) ao seu comér-  ra e não pela filosofia política da monarquia
         de sustentação da “aristocracia mercantiliza-  cio. Este era em termos simples o acordo de  absoluta. Será este corpo de oficias criado em
         da”, para usar a expressão de Vitorino Maga-  base e Portugal não tinha força para alterar a  circunstâncias tão anormais o principal ins-
         lhães Godinho, que era a elite da sociedade  sua lógica. É claro que isto implicava a médio  trumento da introdução do regime liberal em
         portuguesa de então. As finanças régias não  prazo a ruína financeira de Portugal e a crise  Portugal, logo em 1820 e nas várias guerras
         mais se restabeleceriam deste golpe, o mes-  profunda da “aristocracia mercantilizada”, ou  civis posteriores.
         mo acontecendo com a balança comercial. A  seja a ruína do Antigo Regime e da monarquia   A Inglaterra, porém, só faz isto com o Exér-
         partir de 1807 começa a “crise financeira” cró-  absoluta, mas não havia alternativa nas condi-  cito. A Armada fica no essencial no Brasil e
         nica do Estado, o endividamento ao exterior  ções de então.           Londres não precisa dela para as guerras de
         e outras mazelas que se prolongam pelas dé-  Há ainda um segundo e não menos impor-  1808-1815, pois a Royal Navy domina por
         cadas seguintes; do mesmo modo, a                                            completo os mares da Europa. A In-
         balança comercial, que era normal-                                           glaterra paga o novo Exército portu-
         mente positiva até então, passa a ser                                        guês, que é essencial para a sua estra-
         negativa. Na realidade, de 1807 até à                                        tégia na Península, mas não financia
         actualidade a balança comercial de                                           a Armada. Como a Corte no Brasil
         Portugal só foi positiva em três anos                                        não precisa de uma Armada nume-
         durante a 2ª Guerra Mundial. O mo-                                           rosa e só conta com uma parte dos
         delo económico do Antigo Regime                                              rendimentos do passado, o resulta-
         recebia uma machadada mortal e o                                             do é que a vistosa esquadra nacional
         modelo político cairia logo a seguir,                                        de 1807 apodrece ingloriamente nos
         como era normal.                                                             anos seguintes, por falta de dinhei-
           Poder-se-á perguntar: mas se a ocu-                                        ro que a sustente. A maior parte das
         pação francesa de Portugal durou                                             naus desarmam e são colocadas na
         menos de um ano, porque não voltou                                           Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro,
         tudo à situação anterior quando Junot                                        onde acabam por apodrecer no clima
         foi expulso do Reino? Na realidade, o                                        tropical ao fim de alguns anos. Logo
         acordo de 1810 assinado com a Inglaterra não  tante motivo para a ruína do Antigo Regime.  em Agosto de 1810 a Armada portuguesa só
         só confirma a abertura dos portos do Brasil,  Com a Corte nessa inclemente manhã de 29  mantém uma das antigas 12 naus a navegar
         como dá excepcionais vantagens aos comer-  de Novembro partia a quase totalidade da  (a Vasco da Gama). Das 8 naus que partem de
         ciantes ingleses, que tinham direito a tribunais  Armada e da alta hierarquia militar, o que in-  Lisboa em Novembro de 1807, só uma regres-
         próprios e a mais regalias que os portugueses.  cluía qualquer coisa como o corpo de oficiais  sa, enquanto as restantes apodrecem ingloria-
         Como era isto possível?            da Armada em peso e um quarto a um terço  mente em terras de Vera Cruz.
                                                                                      REVISTA DA ARMADA U MARÇO 2008  21
   90   91   92   93   94   95   96   97   98   99   100