Page 96 - Revista da Armada
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A Corte, que se transferiu para o Brasil em iria produzir inúmeros estados no processo da lo quase absoluto do comércio mundial, com
1807 numa Armada nacional ainda podero- sua independência. todas as rotas principais dominadas por ela e
sa, regressa, em 1821, trazida numa esqua- A última grande consequência da retirada com a abertura de todo um continente ao seu
dra que é uma sua pálida imagem (1 nau, 1 da Corte para o Brasil foi o estímulo para a comércio (e ao comércio dos EUA, pode-se
fragata, 5 outros navios da Armada e 5 velas criação de um novo sistema mundial de he- acrescentar). A retirada a Corte para o Brasil,
mercantes). Entre 1807 e 1821 uma força de gemonia inglesa. A transição ocorre paulati- em resumo, foi um passo decisivo para a cria-
12 naus e outras tantas fragatas, passa para 2 namente ao longo dos 23 anos das guerras da ção do novo sistema mundial de hegemonia
naus em mau estado e 6 fragatas. Das 2 naus revolução e do Império (1792-1815), quando a britânica que viria a marcar o século XIX.
sobreviventes uma estava normalmente de- Inglaterra reformula e reforça a sua hegemo- Voltamos assim ao começo deste texto e à
sarmada por falta de fundos (era a Rainha de nia global. tese polémica que o dia 29 de Novembro de
Portugal), enquanto a outra (a D. João VI) era a Um dos mais importantes passos para esta 1807 marca a chegada do contemporâneo e o
única herdeira das brilhantes tradições secula- reformulação é a absorção ou o fim dos ou- fim do Antigo Regime em Portugal, no Brasil
res de uma Armada que em tempos dominou tros grandes impérios europeus. Os impérios e em grande parte da bacia do Atlântico. Nesse
os oceanos do mundo. Foi isto a queda imensa da Holanda, França, Dinamarca ou Suécia são dia não só terminam para sempre os circuitos
do poder relativo provocada pela retirada da paulatinamente desmantelados com a queda económicos internacionais que estão na base
Corte para o Brasil! das suas colónias, uma após outra. O 2º Impé- do Antigo Regime em Portugal, como se des-
A economia do Antigo Regime em Portu- rio português, o Império do Brasil, continua faz a força armada que os sustenta, se lançam
gal baseava-se no controlo da rota oceânica formalmente durante mais uns anos, mas ter- os alicerces da grande nação brasileira unida
do Brasil, mantida por uma Armada em todo o seu imenso território, se
que, em 1807, era ainda uma força prepara a queda da monarquia espa-
considerável em termos internacio- nhola e se dá o passo mais importan-
nais. A sua ruína com a retirada da te para a criação de um novo sistema
Corte para o Brasil, foi igualmente a mundial de hegemonia inglesa.
ruína do Império e do regime. Am- Quando as velas da esquadra Real
bos acabariam, aliás, quase ao mes- se afastam de Lisboa nessa chuvosa
mo tempo: em 1820-1822, com a re- manhã de 29 Novembro de 1807, não
volução liberal e a independência do transportam consigo só a Corte, a eli-
Brasil, acontecimentos intimamente te e uma parte substancial da rique-
ligados que resultam directamente za nacional; o que realmente trans-
das condições criadas pela retirada portam, para não mais regressar, é o
da Corte. Antigo Regime e o que levam consi-
As mudanças provocadas pela go é a chegada do contemporâneo, a
saída da família real não ficam por independência do Brasil e um novo
aqui, embora estas já sejam imensas. sistema mundial, embora isso não
Ao chegar ao Brasil, D. João fez o que fosse claro para nenhum dos seus
era inevitável: estabeleceu aí as insti- ilustres passageiros. Podemos dizer
tuições centrais do Reino, que levava que o Atlântico mudou radicalmen-
na esquadra e abriu os portos. Desses te nesse dia.
actos resultaram duas coisas muito
importantes. A primeira é que o Bra- A ACADEMIA REAL
sil passou a estar mais ligado à Ingla- DOS GUARDAS-MARINHAS
terra do que a Portugal. A segunda, é
que o Brasil se habituou a governar- A Armada, ao partir para o Brasil,
se a partir das instituições no seu ter- levava as instituições que eram essen-
ritório e estas, muito mais fortes do ciais para a sua continuação do outro
que no passado, uniram firmemente lado do oceano. Na pasta da Marinha
as várias regiões que o compunham. no Brasil foi mantido o Visconde de
As redes que se formam rapidamen- Anadia, que não tardou a instalar no
te a partir do Rio, com base na Corte Rio o Quartel-General da Armada, a
e nas instituições centrais do Reino, criam um mina em termos económicos com a abertura Intendência e Contadoria, o Hospital de Mari-
sistema de governo centralizado no amplo ter- dos portos em 1808. O Império espanhol es- nha, a Fábrica de Pólvora e o Conselho Supre-
ritório da antiga colónia. Os anos de 1807-1815 boroa-se igualmente pouco depois com a des- mo Militar, enquanto reorganizava e expandia
são de rápida centralização do poder no Brasil truição da monarquia de Madrid, outras das o Arsenal da Marinha aí existente desde 1764
com um forte reforço dos laços nacionais, tudo consequência da insensata invasão de Portu- com os técnicos e máquinas transferidos do
alimentada pela prosperidade económica. gal. Para Londres o que interessava não era o Arsenal de Lisboa. Uma das mais importan-
D. João percebe muito bem esta mudança controlo político sobre o Brasil ou as colónias tes instituições da Armada que passou para o
e sabe que é impossível voltar para trás, pelo americanas; essa era uma ambição comple- Brasil era a Academia Real dos Guardas-Ma-
que, em 1815, cria os “Reinos Unidos de Por- tamente estranha à maneira inglesa de olhar rinhas, a sua casa-mãe.
tugal e do Brasil”, centralizando ainda mais a para o mundo. O seu objectivo era meramente É costume dizer que o século XVIII foi o “sé-
administração no Rio. A grande colónia ameri- abrir os impérios da América ao comércio in- culo das luzes”, devido ao grande avanço da
cana deixava de ser uma colónia, antes mesmo ternacional, ou seja, transferir o papel de placa ciência, da técnica e da mentalidade a ela asso-
da sua independência. Agora, pelo contrário, giratória dos portos peninsulares para os britâ- ciada, nomeadamente da ideia central que os
era Portugal que se queixava de ser “uma co- nicos. Ora isto foi conseguido de imediato em homens nascem iguais e que o seu progresso
lónia da sua colónia”. Em resumo, com a reti- relação ao Brasil em 1808 e poucas semanas de- só deve depender do mérito próprio e não do
rada da Corte em 1807 não só o Brasil dava o pois em relação às colónias espanholas, devido nascimento. A instituição militar é a primeira
passo decisivo para a independência de 1822, ao esboroar da monarquia de Madrid. a reflectir esta evolução, até porque na segun-
como o fazia de forma unida na imensidão do A Inglaterra podia dar-se ao luxo de finan- da metade do século se desenvolvem as ar-
seu território, ao contrário do que viria a acon- ciar a guerra contra a França na Península e mas que exigem uma maior formação técni-
tecer com o Império espanhol da América, que na Europa, porque em troca recebia o contro- ca e científica. Surge então em toda a parte a
22 MARÇO 2008 U REVISTA DA ARMADA