Page 13 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (9)

Velas e manobras num combate naval
Aregência de Dª Catarina, após a mor‑
        te de D. João III, durou até 1562 e ter‑  Jorge de Sousa acabou por ser preso no Castelo    A nau avistada era do reino do Achem, e
        minou a seu requerimento, mas com         de S. Jorge, onde ficou por alguns meses, até   estava tão segura da sua força que não se per‑
                                                  lhe ser concedido perdão.                       turbou com a aproximação de Lopes Rebello.
alguma conflitualidade latente por parte de Na Índia, D. Francisco Coutinho dava an‑ Alcançaram‑na quando “foi o quarto da mo‑
alguma fidalguia e de sectores do povo, que damento aos assuntos correntes, despachan‑ dorra rendido” mas, quando estavam perto,
expressaram em cortes os seus receios. Pai‑ do navios para Malaca e Molucas, e empos‑ ela orçou e tentou abalroá‑los. O galeão ma‑
rou no ar o domínio de Filipe II de Espanha, sando os novos capitães de fortalezas. Corria nobrou para minimizar os efeitos do embate
sobrinho da Regente, que nunca escondeu a notícia que, no final do ano anterior, tinha e lançou‑lhe os cabos com os arpéus para que
a sua proximidade a Castela, e uma política tentado sair do Mar Vermelho o corsário turco não fugisse, tendo já o seu pessoal preparado
tendente (digamos) a concertar interesses, um Cafar e, apesar de se saber que recolhera com para o combate. Evidentemente que a luta foi
pouco frustrada quando morreu o imperador receio dos portugueses, o Conde armou três tremenda, deixando os portugueses surpre‑
seu irmão, no ano de 1558. Temiam os portu‑ galeões e vários navios de remo para correrem endidos com uma resistência que não imagi‑
gueses que a política ultramarina le‑                                                                                navam, por suporem que era uma
vasse à entrega de Mazagão e Tânger,                                                                                 nau de carga, onde apenas viajavam
praças sobre que recaía a ameaça de                                                                                  mercadores e pouca gente para os
Mawlay Muhammad (Mulei Amete                                                                                         defender. Ainda era noite cerrada
nos textos portugueses) que a cercou                                                                                 quando chegou o galeão deAntónio
em 1562, como será tratado numa                                                                                      Cabral que, sem conseguir ver bem
próxima revista. São factos que me‑                                                                                  o que se passava, abalroou os dois
recem um estudo com pormenor e                                                                                       navios sem grande nexo. Conseguiu,
acerto, que não cabe no espaço cur‑                                                                                  apesar de tudo, cortar os gualdro‑
to destes artigos, mas importa sa‑                                                                                   pes* do leme (que, naqueles navios,
lientar que a nomeação do 3º Conde                                                                                   correm “pela banda de fora”) da nau
de Redondo, D. Francisco Coutinho,                                                                                   inimiga, deixando‑a desgovernada.
para Vice‑Rei da Índia em Janeiro de                                                                                 Mas, quando isto aconteceu, a situ‑
1561, representa o afastamento do                                                                                    ação de Lopes Rebello era já muito
reino do homem que fora o último                                                                                     má, com o navio em chamas por cau‑
capitão de Arzila. Os argumentos de                                                                                  sa das panelas de pólvora que lhe ti‑
nomeações de fidalgos de tão eleva‑                                                                                  nham lançado dentro. Graças ao in‑
da nobreza – como já fora o caso de                                                                                  cêndio e por ser de noite, os mouros
D. Constantino de Bragança – eram                                                                                    “desaferraram‑se” e tentaram fugir
o de fortalecer um governo da Índia                                                                                  manobrando apenas com o pano,
enfraquecido pela corrupção, mas,                                                                                    mas não conseguiram controlar o na‑
na prática, representavam também o Batalha de Lepanto. Fresco do Palácio dos Doges –Veneza.                          vio que virou em roda e caiu de novo
afastamento do reino dessas figuras    Este pormenor mostra-nos bem o ambiente de um combate naval no século XVI,    em cima dos dois galeões, cujas gen‑
gradas, com todas as consequências     semelhante aos muitos que os portugueses travaram no Índico, na mesma época.  tes lutavam com o tremendo incên‑

que isso tinha.                                   a entrada do Estreito, invernando em Ormuz dio. António Cabral mandou cortar os cabos
O Conde partiu de Lisboa na primeira quin‑ quando começasse a monção de sudoeste. Diz (“as rajeiras do seu galeão”) que o prendiam
zena de Março, chegando a Moçambique em Diogo do Couto que demorou vinte dias a ao novelo de chamas dos dois navios que se
Julho e a Goa a 7 de Setembro, recebendo de atravessar “aquelle grande golfo, que vai da afundavam, salvando os companheiros que
imediato o cargo de Vice‑Rei. D. Constantino costa da Índia até a da Arabia”, alcançando pôde. Pela manhã, os portugueses puseram
embarcou pouco tempo depois na nau Cha‑ Caixen (Qishn – 15º 25’N; 51º 45’E) “hum dia o batel na água e assim andaram a recolher
gas, que mandara construir a expensas suas, pela manhã”. Um dos galeões era comandado os seus náufragos e matando ou cativando os
viajando para Cochim e Lisboa, onde chegou por Pero Lopes Rebelo, que se apercebeu da inimigos que encontraram.
no ano de 1562.As agruras do mar eram e são presença de uma enorme nau desconhecida, Estou em crer que este tipo de episódios
imprevisíveis, mas os navios fortes, bem cons‑ navegando em direcção ao Mar Vermelho. A ocorreu amiúde nas águas do Oceano Índico,
truídos e carregados como deve ser, resistiam‑ descrição do cronista é interessantíssima, pela nalguns casos com maior violência e resulta‑
‑lhe melhor do que as velhas naus decrépitas expressividade e realismo com que nos mos‑ dos mais desastrosos ainda. Este, contudo,
onde pessoas e fardos se amontoavam pelas tra as sucessivas manobras e as contingências mereceu a atenção do cronista que descreve
cobertas e convés, à medida de uma desen‑ de um combate naval, nos tempos em que o a manobra dos navios com um pormenor e
freada cobiça que, muitas vezes, levou tudo a controlo do navio dependia da agilidade da vivacidade que permite a sua compreensão a
perder. Perturbou a viagem apenas um episó‑ actuação nas velas. Quem primeiro viu a nau quase cinco séculos de distância. Do resto da
dio insólito, ocorrido com Jorge de Sousa, que deu sinal ao resto da armada com tiros de armada sabemos que foi invernar a Ormuz,
fora capitão da armada de 1550 e que ficara na bombarda e virou imediatamente sobre ela, como lhe ordenara o Vice‑Rei, regressando na
Índia nesse ano. Entendeu ele que não devia primeiro para ver quem era e depois para a monção seguinte a Goa.
reverência a D. Constantino, afastando‑se da perseguir e tentar tomar, colocando em cima
esquadraerecusando‑seaabaterasuabandei‑ “todas as velas, e varredeiras”. Estas “varre‑                               

ra quando os navios se encontraram em Santa deiras”, hoje designadas por “varredouras”,                              J. Semedo de Matos
                                                                                                                     CFR FZ

Helena. Era uma afronta intolerável para um       são duas velas complementares colocadas de         * “Aldropes” na expressão de Diogo do Couto,
fidalgo da estirpe Bragança e a nau Chagas es‑    um e outro lado do traquete, aumentando a       cuja precocidade pela leva a supor não ser o termo
teve com a sua artilharia pronta para o comba‑    sua área e imprimindo maior velocidade ao       de origem inglesa (guide-rope), como afirma o filólo‑
te, mas os ânimos amainaram até Lisboa, onde      navio com ventos muito largos.                  go e dicionarista José Pedro Machado.

                                                                                                                     Revista da aRmada • JUNHo 2010 13
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