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REVISTA DA ARMADA | 484

Vaz Dourado – 1561.                         geográfico tutelado pela China e não se ti-  o país precisava desta cadeia de fornece-
                                            nham dado conta da verdadeira dimensão       dores que construíam com este comércio
tidos como impostores e encerrados em       dessa tutela nem do poder que lhe estava     a sua própria riqueza. Mas o Império olha-
masmorras.                                  subjacente. Um poder que não pressupu-       va esta periferia como um espaço inferior,
                                            nha capacidade de projectar forças milita-   que devia manter-se à distância, contro-
  A certa altura, estando já presos em      res além-mar, mas que decorria do facto      lando as suas aproximações mantendo-as
Cantão e passando por grandes dificulda-    de serem um imenso país, com cerca de        restritas ao indispensável. E fazia-o atra-
des, as autoridades chinesas prepararam     cem milhões de habitantes em 1500, re-       vés de um ritual complexo, obrigando os
uma carta ao capitão de Malaca, que os      presentando uma enorme massa de con-         comerciantes a ficar em ilhas afastadas,
próprios foram forçados a redigir em por-   sumidores e uma capacidade económica         onde os compradores se deslocam para
tuguês, nos termos em que lhe foi indica-   que lhe permitia sustentar uma periferia     fazer os seus negócios. Só as embaixa-
do, exigindo a imediata retirada daquela    de tributários fornecedores, que man-        das tributárias podem entrar controlada-
cidade e a sua entrega ao sultão Mahmud     tinha em regime de subordinada vassala-      mente, sendo-lhes permitido, enquanto
Xá. Esta missiva foi enviada através de um  gem.                                         os enviados se deslocam à corte, outros
comerciante malaio, mas a esperança que                                                  venderem tudo o que podem. Mas enten-
nela depositaram era certamente nenhu-        Consideravam-se os chineses como me-       dem os chineses que esta ordem cósmica
ma. Sabiam bem que as condições nunca       diadores entre o Céu e a Terra, tutelando    exige um equilíbrio global em todo espa-
seriam satisfeitas e que os esperava um     um vasto mundo de vassalos à sua volta.      ço da sua influência de grandes consumi-
longo e penoso cativeiro.                   Periodicamente a esses vassalos era dado     dores. As viagens marítimas são para eles
                                            o “direito” de virem pagar o tributo de      absurdas e perniciosas e só as efectua-
O mundo oriental chinês                     uma mediação cósmica que os protege.         ram ou ordenaram no princípio do século
  O projecto pensado pelas autorida-        Era assim que entendiam a sua relação        XV, precisamente porque era necessário
                                            com o exterior. Aos tributários era reco-    promover o ordenamento adequado dos
des portuguesas para um relacionamen-       nhecido o direito de enviar embaixadas       seus tributários, estabelecendo as hierar-
to estável entre os reinos de Portugal e a  com prendas, a que se associava imensa       quias e consolidando as regras. Foi o gran-
China cessava assim, de forma violenta e    teia de comércio, envolvendo os funcio-      de almirante Cheng Ho, cujas sucessivas
sem nenhuma saída diplomática de futu-      nários da administração central e regio-     viagens alcançaram a Índia e Sofala, que
ro. Em boa verdade a ideia de uma em-       nal. E assim entravam outras tantas mer-     entregou ao soberano fundador de Mala-
baixada formal, organizada nos moldes       cadorias que, por si só, representavam um    ca o selo de tributário, no ano de 1409.
ocidentais, revelara-se desastrosa. Mas     movimento comercial imenso, a abaste-        A cidade agora conquistada por Albuquer-
compreende-se também que não seria fá-      cer toda a população que não está ligada     que era, para os chineses, a porta do vas-
cil adoptar uma solução adequada à rea-     ao aparelho do poder imperial. Na verdade,   to oceano tutelado discretamente (como
lidade chinesa de então. A conquista de                                                  também era seu hábito) pelo Celeste Im-
Malaca lançou a lusa gente num espaço                                                    pério.

                                                                                           Os dez juncos com gente afável que Al-
                                                                                         buquerque encontrou em 1511 tinham
                                                                                         por detrás de si um poder incompreen-
                                                                                         sível pelas autoridades portuguesas. Só
                                                                                         perceberam a dimensão e a força do gi-
                                                                                         gante, depois dos incidentes com Simão
                                                                                         Peres de Andrade e Martim Afonso de
                                                                                         Melo. Os portugueses foram expulsos do
                                                                                         Mar da China e a sua embaixada foi apri-
                                                                                         sionada e posta a ferros, tida como de
                                                                                         gente impostora. Digamos que o primei-
                                                                                         ro passo tinha sido dado em falso. Mas
                                                                                         aprenderam bem a lição. E aprenderam-
                                                                                         na depressa, porque quatro décadas de-
                                                                                         pois foi-lhes concedida autorização para
                                                                                         um estabelecimento em Macau de forma
                                                                                         permanente e com um carácter que até aí
                                                                                         nunca tinha sido concedido a nenhum es-
                                                                                         trangeiro. Mas para isso tiveram de seguir
                                                                                         uma via diferente, talvez mais pragmáti-
                                                                                         ca mas igualmente digna de que daremos
                                                                                         contra num próximo artigo.

                                                                                                                   J. Semedo de Matos
                                                                                                                                    CFR FZ

                                                                                         N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico

20 ABRIL 2014
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