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REVISTA DA ARMADA | 484
e Singapura, cruzando a costa do Vietna- desembarque e o comércio. Nem sequer Infelizmente para os portugueses, o
me e as ilhas do sueste chinês até à foz conseguiram fazer aguada nas ilhas e dois Imperador morreu em Abril de 1521,
do rio de Cantão. E o primeiro a coman- dos navios foram aprisionados com toda a sucedendo-lhe um longo ritual de suces-
dar uma empresa deste tipo foi o ex-ca- tripulação, que morreu em combate ou foi são que obrigou a embaixada a deixar Pe-
pitão do mar de Malaca, Fernão Peres executada posteriormente. quim e voltar a Cantão. E a situação pio-
de Andrade, que partiu em 1517, levan- rou em cada dia passado. Não só chegou
do Tomé Pires como embaixador. Não é A embaixada frustrada à corte a notícia dos sucessivos inciden-
possível detalhar aqui os pormenores des- Quanto à embaixada de Tomé Pires, sa- tes ocorridos com as expedições de Simão
ta viagem, mas é importante dizer que Peres de Andrade e Martim Afonso de
agiu com a prudência própria de um pri- bemos que permanecera em Cantão até Melo, como cresceu a força dos que não
meiro contacto associada à altivez de um Janeiro de 1520, data em que foi autori- queriam a presença portuguesa naquelas
fidalgo europeu. Nalguns casos foi além zada a seguir para Naquim e depois para terras. Subitamente levantavam-se vários
do que lhe permitia o protocolo chinês, Pequim. A uma primeira espera de quase problemas: Portugal não era um reino que
forçando as portas intransponíveis das três anos, sucedeu-se cerca de um ano de tivesse recebido o privilégio tributário;
ilhas da foz do rio, reservadas ao comér- viagem. Transportavam uma carta de D. por outro lado afrontara um verdadeiro
cio estrangeiro, e entrando com os navios Manuel para o imperador, que fora fecha- vassalo desapossando-o do seu território
até à cidade de Cantão, onde fez comér- da e selada em Lisboa, e uma outra escri- e afrontando o equilíbrio político regio-
cio e onde deixou o embaixador, pedindo ta em Cantão pelos interpretes chineses, nal, cujos sintomas já se faziam sentir nas
para construir uma feitoria de pedra e cal. ditada por Fernão Peres de Andrade. En- guerras em torno da Península Malaia.
Regressou com lucros fabulosos – como tre ambas subsistia uma contradição in- Acumulavam-se, enfim, argumentos para
as anteriores empresas – entusiasmando sanável: a missiva do rei de Portugal fora que os representantes nacionais fossem
a que se repetisse a experiência e fosse escrita “ao modo que ele usava escrever
dada continuidade ao processo de estabe- aos Reys Gentios daquelas partes”, como Afonso de Albuquerque – Galeria dos Vice-Reis.
lecimento na costa chinesa. nos diz João de Barros; e a do capitão fora
escrita pelos tradutores, adaptando o tex-
Os portugueses não estavam habitua- to às regras do cerimonial e da concep-
dos a negociar com cedências no que ao ção política chinesa. Na prática, na carta
entendimento da sua superioridade de de D. Manuel (aberta na corte de Pequim)
cristãos ocidentais dizia respeito. Os pe- o imperador era tratado como um par do
quenos avanços e recuos eram sempre soberano português, a quem era ofereci-
pontuais e tácticos, tentando sempre ca- da amizade e propostas vantagens comer-
valgar as circunstâncias, confiantes na ciais; ao passo que na de Fernão Peres
supremacia dos seus navios e artilharia. lhe era apresentado um pedido de vassa-
Mas, neste caso específico, ao procede- lagem e tributo, à maneira oriental e nos
rem como faziam habitualmente, estavam termos em que o faziam todos os reinos
a acordar um gigante de que não conhe- do Extremo Oriente. Na verdade nunca se-
ciam a dimensão e a força. A Fernão Peres ria possível que o rei de Portugal aceitas-
de Andrade, em 1517/18, seguiu-se Simão se ser tributário de um soberano não cris-
Peres de Andrade, em 1519/20, que levou tão, colocando-se sempre num plano su-
ainda mais longe a sua ambição e impru- perior a ele. Mas, por outro lado, a China
dência. Para além de pequenos inciden- não conhecia outra relação com o exterior
tes, afrontou costumes imperiais relevan- que não fosse a de se colocar no centro do
tes e levou a sua postura ao ponto de pre- mundo e aceitar benevolamente o tribu-
tender impor a exclusividade de comércio to de nações subordinadas. Esta questão
na foz do rio de Cantão. Um conjunto de era irresolúvel e, quando foi detectada a
factos que foram a gota de água a trans- contradição entre os dois documentos de
bordar o copo. uma mesma embaixada, levantaram-se
desconfianças profundas que levaram à
Em 1520, Fernão Peres de Andrade che- execução dos tradutores. Numa determi-
gou a Lisboa, transmitindo ao rei a sua pró- nada fase dos inquéritos a esta anomalia
pria visão do mundo chinês. O rei deve ter o próprio imperador se inclinou para uma
gostado do que lhe foi descrito com opti- atitude benevolente, considerando que os
mismo e, em Março de 1521, nomeou Mar- estrangeiros, vindos de tão longínquas pa-
tim Afonso de Melo Coutinho como “capi- ragens, desconheciam certamente os cos-
tão-mor da armada da China” e capitão de tumes do Celeste Império. Mas os altos
uma fortaleza a construir naquelas partes. funcionários da corte eram mais sensíveis
Chegou a Malaca em Julho de 1522 e partiu aos sucessivos apelos feitos pelo sultão
poucos dias depois para alcançar o rio de de Malaca, Mahmud Xá, deposto com a
Cantão em Agosto. Esperavam-no cerca de conquista de Afonso de Albuquerque.
trezentos navios e embarcações da guar-
da costeira chinesa, que lhe impediram o
ABRIL 2014 19