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REVISTA DA ARMADA | 511
































          Bligh e os que lhe permanecem leais são abandonados à deriva num escaler do Bounty (pintura de Robert Dodd).

          tratamento equiparado ao dos oficiais subalternos. De modo a   Cook, mostra-se apostado em punir severamente quaisquer actos
          poupar a guarnição a um desgaste exagerado na longa viagem   inamistosos na relação com os indígenas, fazendo, inclusive, ques-
          que se aproximava, Bligh dividiu os homens em três quartos, cuja   tão de executar as penas na presença dos chefes tribais.
          chefia entregou a John Fryers, o Mestre do navio, a William Pe-  O motim estalou vinte e quatro dias depois da partida, ao lar-
          ckover, o Artilheiro, e a Fletcher Christian, um dos contramestres,   go da ilha de Tofua, sob a chefia de Fletcher Christian. Apanha-
          com quem navegava pela terceira vez e a quem, supostamente,   do de surpresa no seu camarote, Bligh foi manietado e conduzi-
          reconhecia grande potencial, de tal modo que, durante a viagem,   do ao convés, sem que os que lhe eram leais, cerca de metade
          viria a nomeá-lo Imediato interino, ultrapassando Fryer (o qual,   da guarnição, pudessem – ou quisessem – esboçar a mínima
          mais tarde, viria a declarar que tal acto se devera a uma questão   resistência (de resto, o navio não tivera direito a um destaca-
          de simpatias pessoais).                             mento de marines para manter a segurança a bordo). Existin-
           Segundo muitos dos seus biógrafos, Bligh estava longe de cor-  do, como atrás foi referido, sérias dúvidas sobre o propalado
          responder à imagem de tirano que a posteridade lhe atribuiu (em-  carácter tirânico de Bligh, consideram alguns autores que a sua
          bora acontecimentos posteriores venham sugerir que algo na sua   linguagem ríspida, eventualmente agravada nos últimos dias,
          atitude o tornaria, no mínimo, pouco popular entre os seus subor-  lhe poderá ter valido várias antipatias, entre elas a de Christian,
          dinados). Frequentemente referidos são, também, a sua elevada   que até àquela altura gozara, aparentemente, da simpatia do
          instrução, o seu interesse pela ciência e a sua constante preocupa-  seu comandante. O próprio mestre do navio, John Fryer, que
          ção em manter a higiene e os hábitos saudáveis a bordo.  se manteve leal, refere o tratamento rude dado aos oficiais e
           Após a partida, o Bounty dirigiu-se ao Cabo Horn, que não con-  a pressão a que Christian andava sujeito nos últimos dias. No
          seguiu dobrar devido ao mau tempo, tendo, então, atravessado   entanto, o grande motivo para a revolta poderá terá sido o fac-
          novamente o Atlântico, passado o Cabo da Boa Esperança, e cru-  to de alguns homens, mal preparados para a dura vida no mar
          zado o Índico, tendo atingido o Taiti a 26 de Outubro de 1788. Ali   (muitos deles tinham sido segundas e terceiras escolhas, devido
          permaneceu cerca de cinco meses, enquanto as árvores de fruta-  à falta de voluntários para a missão) e ante a perspectiva de
          -pão amadureciam o suficiente para permitir o seu transporte.   mais alguns longos meses de viagem, terem preferido regres-
          Depois de sete duros meses no mar, aquela longa estadia terá   sar aos prazeres do Taiti e aos braços das suas belas mulheres,
          sido  extremamente  agradável  para  os  membros  da  guarnição,   pelos quais não hesitariam em trocar a sua vida na Inglaterra.
          que não tardaram a adaptar-se à vida fácil dos nativos e à sua   Bligh, pelo menos, parece estar convicto desta explicação na
          grande afabilidade, especialmente no que se refere à prodigali-  sua própria versão do motim.
          dade amorosa das mulheres locais.                     O Comandante e dezoito homens que lhe permaneceram fiéis
           De tal modo assim foi que, na altura de partir, a 4 de Abril de   foram, então, embarcados num dos escaleres do navio (com cer-
          1789, três marinheiros desertaram, tendo sido recapturados. Em-  ca de 7 metros), que rapidamente ficou sobrelotado (motivo pelo
          bora a pena prevista para a deserção fosse a morte, Bligh limitou-se   qual outros quatro ficaram retidos a bordo), e largados no mar, dis-
          a mandá-los chicotear, acto que, apesar de tudo, ficou na memó-  pondo apenas de algumas escassas provisões (alguns pedaços de
          ria colectiva como uma amostra da brutalidade do Comandante. É   carne de porco), quatro sabres, um sextante e um relógio de bolso.
          possível que a má vontade da guarnição em regressar ao mar tives-  A viagem que Bligh e os seus homens levaram a cabo entre
          se exigido, a partir dali, um certo aperto da disciplina. Na verdade,   Tofua e Timor, durante 47 dias e ao longo de cerca de 3.600 mi-
          no diário de bordo do Bounty, notamos que os castigos corporais   lhas é, justamente, considerada um notável feito de marinharia e
          começam a surgir, essencialmente, a partir da chegada ao Taiti, pois   navegação. Pelo seu grande interesse, debruçar-nos-emos sobre
          Bligh, provavelmente recordado do incidente que custara a vida de   ela de modo mais detalhado.



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