Page 18 - Revista da Armada
P. 18
REVISTA DA ARMADA | 517
OS DESCOBRIDORES DO CÉU
GAGO COUTINHO
unca é fácil encontrar as palavras certas para descrever as gran-
Ndes figuras da História; pessoas que não se conformaram com
as limitações do seu presente, que ousaram romper descobrindo
um futuro que colhemos e usufruímos. Fizeram-no quase sempre
à custa de persistência e a sabedoria própria das mentes inquietas,
que não se conformam com a ignorância e acreditam que o saber
será obra do seu esforço. A verdade é que depois deles o mundo
ficou diferente, com a herança que nos deixaram, que mudou a
nossa vida, criando outros presentes e outros tantos futuros.
Portugal contou com vários dos seus filhos que deixaram o nome
gravado a ouro na História da Humanidade, sobretudo na época áu-
rea da expansão quinhentista, mas também noutros tempos e até
ao século XX. Carlos Viegas Gago Coutinho – o almirante Gago Cou-
tinho – foi sem dúvida um dos mais brilhantes de entre todos, al-
cançando a dimensão daqueles que descobriram as rotas dos ocea-
nos, nos séculos XV e XVI. Quando a aviação dava os seus primeiros
passos, e os homens ainda ensaiavam temerariamente a experiên-
cia de pôr a voar aparelhos que hoje consideraríamos primitivos,
Gago Coutinho estudou e encontrou a forma desses engenhos fa-
zerem longas viagens, ousando atravessar os oceanos e navegando
com a certeza de alcançar o seu destino de forma autónoma.
Brilhante aluno da Escola Naval, fascinavam-no as matemáticas, a
astronomia e a navegação, de tal forma que concluiu o curso como
primeiro classificado na classe de Marinha. Passou por múltiplos
estágios e comissões de embarque, mas logo em primeiro-tenente
foi desviado para as missões geográficas que se encarregaram de
marcar os limites do império Português, entre o final do século XIX
e as primeiras décadas do século XX. Ficou conhecido entre os seus
pares – portugueses e parceiros internacionais, franceses, ingleses
e holandeses – pelo rigor, organização e método com que efectuava to com mais atenção, imaginando soluções para adaptar o mesmo
as suas observações e cálculos. Foi numa dessas missões, em Mo- sistema aos aviões e permitir-lhes fazer viagens tão longas quanto
çambique, que conheceu e fez amizade com Artur Sacadura Cabral, as dos navios.
outro jovem oficial de Marinha entregue aos trabalhos geográfi- A navegação astronómica praticada no século XX assenta na ma-
cos, que despertava para o recente aparecimento dos aviões. Da nutenção de uma estimativa cuidada do trajecto do navio, corrigida
amizade entre os dois nasceria uma partilha científica cujos frutos a espaços pela observação da altura de astros. São várias as técni-
ficaram na História. cas, que ainda hoje se ensinam na Escola Naval, mas todas elas são
Por alturas de 1919, Sacadura era já um piloto experiente e pro- adequadas às condições da navegação marítima. Pressupõem que
pôs a Gago Coutinho estudar uma solução para que os aviões – que o observador está à altura da ponte de um navio, e que o mesmo
podiam deslocar-se de forma rápida e por cima de todos os obs- se desloca a uma velocidade baixa, em viagens de dias, semanas
táculos – conseguissem usar um sistema de navegação que os ha- ou meses. Nada disso acontece no avião. Em primeiro lugar a sua
bilitasse a fazer grandes travessias e alcançar o seu objectivo com velocidade é muito mais elevada e isso obrigaria a determinações
segurança. Hoje, é imensa a quantidade de equipamentos electró- e cálculos mais rápidos e mais frequentes. E segue-se a dificulda-
nicos capazes de garantir a navegação de forma rigorosa e quase de da estimativa do seu trajecto, porque o efeito do vento sobre a
instantânea. Mas ainda há poucas décadas os navegadores eram aeronave é bastante maior do que os efeitos somados da corrente
obrigados a recorrer à observação sistemática da altura de astros e do vento sobre o navio. Acresce ainda que o aviador está muito
conhecidos, para estabelecerem a sua posição e poderem alcançar mais alto do que qualquer ponte de comando e isso pode afectar
o destino pretendido. Assim acontecia no princípio do século XX, ou até impedir a possibilidade de observações astronómicas rigoro-
quando Gago Coutinho e Sacadura Cabral debateram este assun- sas, com recurso ao sextante usado nos navios.
18 ABRIL 2017