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REVISTA DA ARMADA | 546


              ESTÓRIAS                                                                                          54







































              O “P’LOTO” E O VULCANO



                sta estória não trata de Vulcano, Deus do fogo e fi lho de Júpiter.   alterna (50 Hz). E num instante Ɵ nha o “P’loto” ao meu colo. Foi
              ETampouco do vapor torpedeiro da nossa Marinha assim matri-  um momento inesquecível.
              culado, mas simplesmente do cão de bordo deste navio e bapƟ -  Já em casa, no quintal, o “P’loto” correu para o lugar onde ainda
              zado com o mesmo nome. Das suas capacidades caninas conheço   estava o seu bebedouro, que foi abastecido, e bebeu até se far-
              apenas o que me foi contado por marinheiros desse tempo. Como   tar. Olhou-me nos olhos, enroscou-se e adormeceu. Como é que
              arơ fi ce torpedeiro electricista Ɵ ve curiosidade (nunca saƟ sfeita)   o “P’loto”, levado para tão longe, consegue regressar a casa? Pri-
              em conhecer este velho navio torpedeiro que, sabia-se, Ɵ nha ape-  meiro, ter bons dentes para roer a amarra. Depois: faro, insƟ nto,
              nas um tubo lança torpedos, também saber as caracterísƟ cas des-  inteligência, perseverança, espírito de sacriİ cio; tudo isto e mais,
              tes e mais pormenores pois que o torpedo Whitehead Weimought   ele possuía. É a minha explicação.
              53,34 cm, que estudáramos em Vale de Zebro, era a úlƟ ma palavra.  Passado este desvio à estória, regresso ao Vulcano (cão) para relatar
               Nesta altura (1945) havia o chamado “Quadro dos Navios de   o seu caso, também excitante, também muito curioso, engraçado e
              Guerra”, frente ao Terreiro do Paço, composto por muitas bóias   que vou tentar reproduzir sem me desviar do que me contaram. O
              tendo, cada uma delas, o seu navio certo. Ao vapor torpedeiro   Vulcano ia para terra levado pelos marinheiros e lá era deixado. Mas
              NRP Vulcano, calhava-lhe a posição quase em frente ao Cais do   o navio era o seu lar e havia que regressar a bordo. E como o fazia?
              Sodré e bastante chegado a terra. Era notória a inacƟ vidade deste   De cima da muralha ladrava até que alguém de bordo o atendesse
              pequeno e ultrapassado navio torpedeiro que já  Ɵ nha  apenas,   e lhe acenasse com gesto de chamada. Conseguido isso o Vulcano
              assim constava, uma dúzia de homens a bordo. O Vulcano (navio)   procurava (calculava), correndo na muralha, o local apropriado (ou
              Ɵ nha a bordo o Vulcano (cão) e o relato das suas habilidades   seja, o azimute, que mudava consoante o senƟ do e a força da cor-
              encantou-me. Mas já lá vamos à sua estória.         rente), saltava para a água e, nadando vigorosamente, rumava para
               Sempre  Ɵ ve um fraco por esta espécie animal que vem dos   bordo onde alguém já postado no paƟ m inferior do portaló (centro do
              tempos da minha meninice e em que meu pai caçava. Assim e   ângulo azimute) o esperava e o repescava. E nunca o sistema falhou.
              com a inevitável saudade, destaco o meu querido e inesquecível   E assim, com estas estórias contadas de modo desconexo, dir-
              “P’loto” (abreviatura de Piloto). Excelente perdigueiro, foi cobi-  -se-á, presto justa homenagem ao “Cão”, o melhor amigo do
              çado e, para meu grande desgosto, doado a um amigo, também   homem, pela indefecơ vel lealdade, inteligência, dedicação, salva-
              ele caçador, que morava na Fóia, lá na serra de Monchique (dista   dor de vidas, amigo de crianças, companheiro paciente de velhos,
              de Lagos cerca de 40 km). Até que, umas semanas depois, assomo   de inválidos e… sem nada exigir em troca.
              à janela e vejo parado na rua o “P’loto”, estáƟ co,  esqueléƟ co   E também com saudades do mar…
              (um fusível), olhando para mim com os seus olhos meigos, agora
              tristes, cauda em baixo e um resto de corda caído do pescoço. E                            Teodoro Ferreira
              quando gritei “P’loto” aquele rabinho, agora arrebitado, agitou-se                            1TEN SG REF
              a uma frequência (passe o exagero) pouco inferior à da corrente   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co


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