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REVISTA DA ARMADA | 554
GUERRA E UTOPIA
“UTOPIA” de THOMAS MORE
“PARA UM MUNDO MELHOR NA POLÍTICA E NA ECONOMIA”
uando recebi o amável e muito desafiante convite do Senhor vos fazer relaƟva à gigantesca catástrofe que pode consƟ tuir uma
QProf. Dr. Carlos Morujão para intervir neste tão oportuno Con- guerra nos nossos dias.
gresso Internacional, interroguei-me, preocupado, sobre como Começo por afirmar o que certamente todos assumem como
poderia a minha longa carreira de Marinheiro Militar ajudar-me a óbvio: que é condição necessária, essencial mesmo, para um
ser úƟ l aos propósitos dos nossos painéis, subordinados ao tema mundo melhor na políƟca e na economia que se verifi que uma
“Para um Mundo Melhor na PolíƟca e na Economia”. De facto, a total inexistência de guerra ou, ainda mais explicitamente, que
minha formação fora da esfera militar é naturalmente generalista, haja segurança, entendida esta como a ausência de riscos e de
o que me coloca em dificuldade perante um tão sabiamente esco- ameaças para as sociedades humanas, incluindo os seus bens e o
lhido conjunto de oradores aqui presente. meio ambiente. Na verdade, a instabilidade e os danos
Por isso, resolvi, como é bom hábito dos mari- provocados por riscos, ameaças e confl itos são
nheiros, definir o ponto de parƟda com exac- incompaơveis com o desenvolvimento eco-
Ɵdão e traçar o rumo para o de chegada. nómico e com a harmonia entre pessoas,
E, naturalmente, esse ponto de começo entre grupos humanos e entre nações.
foi, nesta navegação, reler a fresca, ConsƟtuem mesmo a negação da feli-
de cinco séculos, obra “Utopia” ou cidade e da dignidade humanas.
“A Melhor Forma de Governo” de É, seguramente, por isso que
Sir Thomas More e meditar sobre More dedica uma parte da sua
ela. Confesso que foi uma medi- obra aos problemas da guerra
tação que me deu ânimo para e das situações da sua legiƟ mi-
a primeira singradura, isto é, dade, começando pela referên-
para o percurso entre o ponto cia à tolerância apenas daque-
de parƟda e o ponto ao meio las que podemos chamar de
dia seguinte. justas. O debate no Livro I em
Isso aconteceu não por a que Rafael, o tal imaginário
obra ter dado muito realce à marinheiro português, con-
fi gura de um marinheiro por- dena a políƟca de conquista,
tuguês, Rafael Hitlodeu, vindo a parƟ r de um cenário criado
da ilha muito distante da na Corte de França, consƟ tui
Utopia, mas porque notei no a primeira aproximação ao
extraordinário texto de More DR tema, quando procura teorizar
uma atenção muito marcante sobre a legiƟmidade da guerra,
com requisitos essenciais, diria perante as consequências dela
básicos, “para um mundo melhor derivadas.
na políƟca e economia”, ou seja, o “Rafael condena a políƟca da con-
tema de que estamos a tratar. quista e apresenta como modelo
É um foco que surge ainda incipiente os Acorianos que convencem o seu
no Livro I, num considerado “terceiro rei a manter-se nos limites do seu país”
debate,” e que é depois ampliado no Livro II. e, depois de enumerar as desgraças conse-
Estou, naturalmente, a falar daquilo que o autor quentes da guerra, dá o conselho: “...havia o rei
inƟtulou “Coisas de Guerra”. Na verdade, a questão da de dedicar-se ao reino de seus pais, criar nele a maior
possível ausência de paz e de segurança (diríamos hoje) consƟ tuiu prosperidade possível, torná-lo o mais florescente de todos, ter
uma grande preocupação para More, que trata o tema de uma amor pelos seus... e deixar os outros reinos prosperarem...”. Tra-
forma naturalmente profunda e com uma frescura que ainda hoje ta-se de uma muito níƟda declaração de incenƟvo à não agressão
se sente nos pensamentos que passou a escrito. e à concentração de todas as energias na melhoria das condições
Há como que uma intemporalidade nesses legados, a lembra- de vida do próprio reino. Este debate do Livro I termina com uma
rem-me outros autores, como Sun Tzu, ou o Padre Fernando de mensagem de pessimismo. A de que as ideias tão sensatas de
Oliveira e a sua “Arte da Guerra do Mar”, também do século XVI. Rafael não foram acolhidas.
Para mim, estava determinado o primeiro ponto ao meio dia. As No Livro II o autor teoriza sobre a guerra e dedica-lhe um capítulo
singraduras seguintes, entre os sucessivos pontos ao meio dia, pas- onde começa por declarar a sua oposição aos conflitos, a não ser em
saram a estar delineadas no meu pensamento. E quais são elas? caso de defesa. Para esta, assume a preparação dos homens e até
Chegado aqui, abandono a metáfora da linguagem de marinheiro, das mulheres “para protegerem as suas fronteiras ou para escorra-
apesar de nos encontrarmos a bordo da extraordinária “Nau do çarem os inimigos que tenham invadido os territórios dos aliados,
Saber” que é a Universidade Católica, e passo para a terra muito ou bem assim, quando levados por senƟmento de comiseração, se
firme das convicções de More sobre o problema da guerra e, tam- propõem libertar da servidão e do jugo de qualquer Ɵ rano algum
bém, para uma chamada de atenção, muito séria, que gostava de povo oprimido pela Ɵrania, fazendo-o, aliás, por fi lantropia”.
14 AGOSTO 2020