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REVISTA DA ARMADA | 554
É uma linha de pensamento da doutrina tradicional que assenta De forma mais claramente humana, foi, geralmente, o nosso
em Santo AgosƟnho, mas que me merece um comentário de con- relacionamento com as populações com que Ɵ vemos encontros
selho cautelar, pensando nos dias de hoje. Na verdade, a ideia de culturais, como tão tocantemente é descrito por Pêro Vaz de
libertar povos oprimidos pela Ɵrania, através da guerra material, Caminha na carta que escreve ao rei sobre a chegada dos nave-
pode consƟtuir um grande perigo, por vezes um erro mesmo, se gadores de Pedro Álvares Cabral ao Brasil. O relacionamento com
não esƟver devidamente acautelado o estabelecimento da paz, a população local (alcunhada de índios) foi, nessa altura, extre-
a implementar após a mudança políƟca. Nos nossos dias, é disso mamente cauteloso, carinhoso mesmo.
exemplo, entre outros, a tentaƟva de derrube do presidente sírio Na parte da obra de More a que me estou a referir, é também
que conduziu a uma situação de instabilidade com um rol imenso feita inteligente alusão ao moral das forças, às tácƟ cas escolhidas
de víƟmas (meio milhão?) que ainda não parou de aumentar. e à adequação do armamento a cada situação.
De certa forma, também, e para Admiravelmente, é tratado o resta-
referir só mais um caso, relembro DR belecimento da paz e as regras para
que os apoiantes, pela violência, da estabilização das zonas envolvidas
independência precoce dos territó- e dos humanos, seus habitantes.
rios ultramarinos portugueses con- Interpreto que existe em todos estes
tribuíram para a instabilidade e para pensamentos uma muito comovente
sangrentas guerras civis pós-inde- intenção de reduzir as consequências
pendência, com a consequência de da guerra, já que também é percep-
milhões de mortos e as difi culdades ơvel a visão da impossibilidade de
de vida que se têm manƟdo por várias anular completamente tal fl agelo no
décadas. universo humano.
Mas, voltando a More e ao capí- É uma conclusão que reƟ ro desta
tulo “Coisas de Guerra”, saliento que leitura, que procurei também enqua-
refere um impressionante leque de drar no ambiente bélico vivido nos
conceitos que vão desde questões tempos de More e que certamente
éƟcas, hoje reconhecidas e adoptadas muito o terá impressionado.
em convenções, como as de Gene- De facto, e apenas em termos muito
bra, até aspectos tácƟcos e também sintéƟ cos, nos finais do séc XV e na
psicológicos, envolvendo o que hoje transição para o seguinte, assis-
chamamos de guerra psicológica. Ɵu-se a uma rapidíssima e intensa
Por todo o texto perpassa a ideia mudança tecnológica na chamada
de oposição à guerra, a não ser em arte da guerra, com o consequente
caso de defesa. Para a sua condução aumento da violência, dos espaços
alude, com muita clareza, ao uso da envolvidos e do número de víƟ mas. O
inteligência em vez da força para Homem que, durante milénios, Ɵ nha
repor direitos violados e restaurar contado apenas com o poder destrui-
a paz justa, por exemplo através de dor da força dos seus músculos e dos
métodos psicológicos, como os de de alguns animais (cavalo, elefante,
aliciamento dos inimigos, criação de terror, despertar de quere- camelo, etc.), começou, nos finais do século XIV, na Europa, a
las dinásƟcas, promessa de recompensas, etc. De certa forma, usar a energia da pólvora negra, descoberta na China cinco sécu-
na mesma linha, esƟmula a uƟlização de aliados e de soldados los antes, mas manƟda em estado dormente. O quase inviolável
desertores do inimigo. castelo do senhor feudal foi destruído pelo canhão, usando a
Em toda a obra se depreende o princípio da valorização da vida, potência da “nova” mistura negra.
condenando os massacres propícios sobretudo aos vitoriosos, A Idade Média, segundo alguns pensadores, termina com este
prendendo e não executando os criminosos de guerra, respei- evento, mas também com a era da evolução tecnológica rápida
tando escrupulosamente as tréguas estabelecidas com os inimi- que se inicia com a viagem de Vasco da Gama (contemporâneo
gos, mesmo quando se verifiquem provocações, poupando as de More), conforme opinião do Prof. Daniel BoorsƟn, no seu
gentes que não pegaram em armas, graƟficando quem de direito maravilhoso livro “The Discoverers”.
e, ainda, reparando os danos da guerra. O Homem passa a contar com um poder muito maior e com
Curiosamente, muitos destes princípios caracterizaram a acção a capacidade de o levar cada vez mais longe. Se for usado para
dos nossos Lusos antepassados logo na reconquista cristã do ter- o bem, a dignidade do Homem sai elevada, mas o oposto tam-
ritório de Portugal, em que era práƟ ca corrente, após a tomada bém pode acontecer. E é muito curioso que More tenha refl ec-
de uma fortaleza, afastar a população moura para as cercanias Ɵdo com muita atenção sobre as descobertas portuguesas em
sem a hosƟlizar, como, por exemplo, aconteceu em Lisboa, dando plena fase de expansão, percebendo, certamente, que podiam
origem aos saloios (originários de Salé). contribuir para a divulgação da palavra de Deus, se fossem bem
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