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REVISTA DA ARMADA | 556
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PRIMEIRA
VIAGEM DE CIRCUM-NAVEGAÇÃO
Tendo sido recentemente iniciada – e, infelizmente, interrompida por moƟ vos de força maior – aquela que deveria ser mais uma via-
gem de circum-navegação da nossa velha Sagres, desta vez no âmbito das comemorações do V Centenário da viagem de Fernão de
Magalhães, impõem-se algumas refl exões sobre o feito que celebra.
Sem pretender fazer história nem apresentar um relato de tão enaltecida odisseia maríƟ ma, debrucemo-nos criƟ camente sobre alguns
dos seus aspectos mais discuơ veis, mesmo que estes possam, eventualmente, não consƟ tuir novidade para grande parte dos leitores.
OS CRÉDITOS DA PROEZA aventura se não Ɵ vesse o incenƟ vo das cartas que o seu amigo
Francisco Serrão lhe enviava das Molucas ou a parceria com o
entro do carácter fesƟ vo das celebrações em curso, não terá, célebre cosmógrafo Rui Faleiro, que, igualmente desavindo com
Dcertamente, passado despercebida uma polémica originada a coroa portuguesa, lhe deu o adequado sustento técnico e car-
nalguns meios espanhóis mais nacionalistas sobre a perƟ nência tográfi co. Depois, convém não esquecer toda a experiência de
de se estender a Portugal a parƟ cipação numa auto-inƟ tulada navegação, de guerra e de liderança que Magalhães adquirira ao
“comemoração ibérica” que, segundo aquela corrente de opi- serviço de Portugal, sem a qual nunca teria granjeado as qualida-
nião, deveria ser exclusivamente espanhola. des que lhe são hoje universalmente reconhecidas.
Passe o radicalismo – se não mesmo a hosƟ lidade – desta posi- Mas se é de apreciar o gesto das autoridades espanholas em
ção, teremos, talvez, de pôr de parte algum do nosso patrioƟ smo parƟ lhar com os seus vizinhos ibéricos as comemorações de tão
mais exacerbado e admiƟ r que o mérito da primeira viagem de celebrada viagem, menos compreensível é a adopção, da parte
circum-navegação, cabe, efecƟ vamente, a Espanha, embora esta, destas, da expressão “expedição de Magalhães e de Elcano”, que,
em bom rigor, não exisƟ sse, naquela época, como a enƟ dade do ponto de vista histórico, se afi gura algo abusiva. É que se Maga-
políƟ ca que hoje conhecemos. Se, por um lado, a expedição foi lhães não chegou a completar a viagem, cabendo a Juan SebasƟ án
comandada por português, não é menos verdade que este o fez de Elcano a glória de conduzir os sobreviventes de volta a Sevilha,
ao serviço de um soberano espanhol (mantenhamos o termo por não devemos esquecer que este úlƟ mo esteve ao lado dos conspi-
uma questão de conveniência ). Afi nal, também Portugal tem radores que, na Páscoa de 1520, tentaram fazer abortar a missão
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moƟ vos para se orgulhar dos navegadores estrangeiros que teve e regressar a Espanha antes da descoberta da passagem para o
ao seu serviço – como foi o caso de Alvise Cadamosto, de Antonio Pacífi co. É certo que Elcano possuía boas qualidades de chefe e
Da Noli ou de Américo Vespúcio – os quais, por bons moƟ vos, se de marinheiro, sem as quais não teria sido eleito – é esse o termo
juntaram ao esforço nacional das Descobertas. – para encabeçar a expedição (se é que assim ainda se podia desig-
Claro que não é errado, de modo algum, afi rmar que a viagem nar) após a morte de todos os seus comandantes (e o afastamento
de Magalhães se fez com capitais espanhóis e conhecimento do piloto português João Lopes de Carvalho, por suposta falta de
português. O grande navegador jamais se teria lançado naquela capacidade de liderança), mas, numa fase mais decisiva, foram a
Fig. 1 – Magalhães e Elcano: a parceria que nunca exisƟ u
24 NOVEMBRO 2020