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28 MARE CLAUSUM E MARE LIBERUM
O DEBATE FILOSÓFICO E A ESSÊNCIA DA DISCUSSÃO JURÍDICA
NA CÉLEBRE DISPUTA HISTÓRICA. O IMPERIUM E O DOMINIUM.
PARTE I
1. INTRODUÇÃO. A QUESTÃO ocupado, e, ao mesmo tempo, reivindicavam o seu direito
à soberania dos four Bri sh Seas.
evolução ơ pica da legislação sobre o mar – a que Segundo se pode depreender dos elementos históricos
A poderemos, por conceito, designar por law of the mais fi dedignos, o famoso escrito de Grocius integrava um
sea – sempre foi confi gurada numa questão central, e parecer legal que lhe foi pedido pela Companhia das Índias
que resulta da disputa entre o domínio e exercício de Orientais como jusƟ fi cação para a captura do galeão portu-
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autoridade sobre o mar e o princípio da salvaguarda da guês no estreito de Malaca em 1602 .
liberdade dos mares. Quando apenas algumas potências Espanha – então soberana em Portugal – opôs-se à inter-
maríƟ mas eram dominantes, os mares eram Ɵ dos mais venção da Companhia das Índias Orientais em toda a grande
DIREITO DO MAR E DIREITO MARÍTIMO
como áreas de confl ito políƟ co-estratégico do que pro- região de infl uência ibérica, precisamente baseando-se nas
priamente do foro exclusivamente económico, inclusiva- reivindicações de Portugal sustentadas pela Bula Papal con-
mente porque estava em causa a capacidade de defender cedida por Alexandre VI , que já Ɵ nha Ɵ do um momento
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e impor a imunidade da navegação face ao controlo que histórico anterior com a Bula Etsi Cunc , de Calisto III – con-
(algumas) outras Nações poderiam efectuar sobre as Ban- fi rmada já com Sisto IV em 1481 –, na validação do Tratado
deiras que dominavam os mares. A doutrina da soberania das Alcáçovas.
sobre o mar pode situar-se, inicialmente, em 1582, com Grocius invocava o direito ao comércio maríƟ mo como
Bodin, sendo de relevar a importância da teoria defen- sendo uma das premissas próprias do ius gen um, e,
dida por Pacius, em 1619 , em De dominio Maris Hadria- baseado no pressuposto de que os mares são vias mercan-
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ci discepta o, na qual defendia as pretensões maríƟ mas Ɵ s que, devido à sua morfologia própria, não podem ser
de Veneza sobre o AdriáƟ co. suscepơ veis de apropriação, reivindicava a liberdade de
Já Craig, e posteriormente Welwood, em 1613 – con- usar tais espaços. Para as grandes companhias mercanƟ s
temporâneos de Jaime VI, da Escócia – defendiam que a holandesas, que estavam precisamente em crescendo de
propriedade dos mares pertencia às Nações que deles esƟ - vitalidade económica no início do Séc. XVII, era fundamen-
vessem mais perto em termos de terra conƟ nental, sendo tal a mudança da doutrina de exercício de poder sobre o
que, de tal forma, exisƟ ria, por exemplo, um mar inglês e mar defendida pelos portugueses, também por causa do
um mar francês. Contudo, um célebre jurista inglês, Digges, pressuposto de pensamento fi losófi co dos protestantes cal-
em 1569 , no seu Arguments Proving the Queen´s Majes es vinistas; a tese defendida por Grocius era, assim, a defesa
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Propertye in Sea Landes and Salt Shores Thereof, defendia não só de uma questão jurídica, mas igualmente éƟ ca,
que o mar era propriedade da Coroa , questão que mais assim como o lus gen um pretendia estabelecer, ele pró-
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tarde, em 1622, foi suscitada numa comissão de juristas prio, um equilíbrio entre o âmbito jurídico e o éƟ co.
que teve como encargo estudar se, quanto à jurisdição das A publicação do Mare Liberum levou a uma aberta con-
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terras de East Anglia, a mesma se estendia para terras sub- testação de juristas escoceses e ingleses que se opuseram
mersas e ao mar . Neste contexto, Boroughs, outro conhe- ao argumentado na obra, como é o caso de Welwood, em
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cido autor setecenƟ sta, formulou, em 1633, um extenso 1613, tendo Grocius respondido com uma linha argumen-
relatório sobre uma pesquisa documental que efectuou , taƟ va plasmada no seu “Defensio capi s quin maris liberi
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tendo-se deparado com um documento de 1299, de oppugna a Guiliemo Welwodo juris civilis professore,
Eduardo I, que sustentava os poderes da Coroa sobre o mar, capite XXVII ejus libri scrip anglica sermone cui tulum
e que se inƟ tulava De superioritate maris Angliae et juris fecit compendium legum mari mum” . O debate entre
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offi cii Admirallitus in eodem. teses teóricas terá estado na base da resolução do confl ito
Apenas dois anos após as pesquisas de Boroughs, em armado ocorrido na altura de Cromwell – tendo-se criado
1635, surgiria a obra monumental de John Selden, embora um impasse naval – situação que terá sido propícia à difu-
se defenda, usualmente, que tenha sido escrita em 1618 . são da teoria defendida por Grocius. A tese da liberdade
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No entendimento de Selden, o mar não podia ser de uƟ - dos mares, sobretudo acarinhada por autores holandeses
lização comum para todos, e defendia uma noção de pro- como Graswinckel, suscitou uma quase concordância gene-
priedade, argumentando que o mar que rodeava a Grã- ralizada , quando, historicamente, já se assisƟ a à clara
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-Bretanha pertencia à Coroa como se fosse um apêndice ascendência de outras nações europeias, designadamente
indivisível e perpétuo. Foi o crescimento do comércio marí- a própria França de Luís XIV, ao mesmo tempo que ocorria
Ɵ mo que concedeu à questão da soberania sobre os mares algum declínio dos impérios ibéricos. Já pelo fi nal do Séc.
uma relevância internacional, sendo que a Inglaterra resis- XVII, em especial no úlƟ mo quartel (1685-1700), apenas
Ɵ u às pretensões de Filipe de Espanha de proibir outras exisƟ am vagos rumores da teoria da tese da soberania
nações de fazer comércio com o Novo Mundo, e insisƟ a que sobre os mares, permanecendo apenas, como matéria de
Espanha não Ɵ nha direito a regiões que ainda não Ɵ nha grande debate, a questão da extensão das águas costeiras.