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REVISTA DA ARMADA | 556


              2. O DEBATE FILOSÓFICO E A ESSÊNCIA                 encontrou a forma que viria a ser mais plausível, e universalmente
              DA DISCUSSÃO JURÍDICA. O IMPERIUM                   aceite, de se delimitarem direitos exclusivos sobre o mar: o Ɵ ro de
                                                                  canhão.  Portanto, a colocação de canhões ao longo da linha de costa,
              E O DOMINIUM                                        sobretudo através de processos de arquitectura maríƟ ma de constru-
               Como é usual referir-se, a questão magna sobre a liberdade dos   ção de forƟ fi cações maríƟ mas, garanƟ ria a exclusão de navios estran-
              mares foi, igualmente, uma exteriorização – talvez uma fl agrante   geiros da proximidade das costas, o que, nos séculos XVI e sobretudo
              simbologia, até – do Ɵ po de debate de cariz fi losófi co e sócio-políƟ co   XVII, era vital para a defesa das nações, além de uma questão de uni-
              que ocorreu muito marcadamente no período da Contra-Reforma.   formização e de aceitação geral do princípio em si: é que a premissa,
              Grocius, até pela sua linha de vida e formação, e pela sua defesa de   estabelecida desta forma, seria de igual aplicação a todas as nações.
              conceitos da guerra justa e do direito natural, não foi, naturalmente,   Importará, em especial, estudar a obra de Frei Serafi m de Freitas
                                  12
              alheio a todo este contexto . Ao responder aos argumentos de Wel-  (1624), em oposição à de Grocius, mas disso trataremos na Parte II
              wood , e aos pressupostos que este defendia, Grocius, referindo-se   do arƟ go.
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              ao mar, disse que “by the fi rst condiƟ on of nature, was common to
              men”, defendendo, no seu De Jure belli ac pacis, 1646, que “(…) God                    Dr. Luís da Costa Diogo
              was unnecessary to the validity of natural law (…)”, tendo eliminado                 Director Jurídico da DGAM
              a lei divina do ius genƟ um.                        N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
               À medida que se ia generalizando o senƟ do do que se podia efec-
              Ɵ vamente governar se restringiria a uma área sobre a qual se podia,
              fi sicamente, exercer a autoridade do Estado costeiro, a delimitação   Notas
              correcta e precisa das reivindicações maríƟ mas passou a ser consi-  1  E posteriormente, defendida por Palazzi, em 1663.
              derada uma questão de essenƟ a. Ou seja, passou a ser a questão ful-  2  E que se teria baseado nas premissas da lei romana e numa noção de direitos de
              cral. Desta forma, os juristas do Séc. XVII tenderam a concordar, em   prerrogaƟ va, como enunciava quanto a essa doutrina Thomas Moore.
                                                                      Defendia Digges, sobre a faixa litoral que seria propriedade da Coroa, que “And in
                                                                    3
              especial durante a segunda metade do século, que a ocupação do   this estate regal of England we see that the Kings of most ancient Ɵ mes have in the
              mar  concederia a capacidade e o poder efecƟ vo de o regular, assim   right of their crowne holde the seas aboute this llande so proper and enƟ re unto
                 14
              como sobre ele ter o gozo exclusivo dos direitos de propriedade.   them”. Mais tarde, em 1622, Malynes, no Consuetudo vel lex mercatoria, defendeu
                                                                    igualmente que o mar era propriedade da Coroa.
               Estruturalmente, o pensamento dos juristas setecenƟ stas  impli-  4  No âmbito de uma norma estatutária de Henrique VIII, e como Callis entendia,
              cava, pois, que a aquisição de propriedade através da ocupação podia   foram idenƟ fi cadas quatro categorias de interesse e poder real no Mare Angli-
              ser entendida como um direito natural, mas a posse efecƟ va do mar   canus: o imperium regale, potestas legalis, proprietas tam soli quam aquae bem
                                                                    como a possessio et profi tuum tam reale quam personale.
              seria o instrumento necessário para exercer esse direito. Claro que tal   5  No Arquivo da Torre de Londres.
              levou a que se considerasse o mar não como uma res communis mas   6  O trabalho terá sido inicialmente proposto ao Rei para aprovação em 1619, mas
              antes uma res nullius, sendo que essa abordagem nem terá suscitado   – atenta a incompaƟ bilidade de uma das suas alegações sobre reivindicação de
              grande contenda e contestação na segunda metade do século. O mar   terras a Norte que envolvia o irmão do Rei James, o Rei CrisƟ ano IV da Dinamarca
                                                                    – teve dissabores e desavenças com um dos principais conselheiros reais, o Duque
              era considerado como sendo suscepơ vel de ocupação, sendo que as   de Buckingham, o qual terá evitado a publicação da obra.
              grandes questões em debate passaram a ser outras, passando a cen-  7  É interessante notar que, mesmo lendo autores ingleses e holandeses sobre refe-
              trar-se na posse efeƟ va, e não apenas na enunciação do direito em si.  rências ao período histórico de inícios do Séc. XVII – neste caso em parƟ cular, 1602
                                                                    –, portanto em alturas já de União Ibérica, as referências que são feitas a navios
               Pufendorf, no seu De Jure naturae et genƟ um, de 1688, baseado   mantêm o designaƟ vo de “navios portugueses”, bem como, sobre a Bula Papal
              numa premissa antes assumida por Grocius – no senƟ do de que tudo   de Alexandre VI se fazem referências expressas às “pretensões portuguesas” no
                                                                    Oriente, o que é uma terminologia e uma abordagem de relevante interesse para
              o que não está na posse efecƟ va ou consignado ao foro individual   se aferir, efeƟ vamente, que Ɵ po de soberania Espanha, naquelas décadas, exerceu
              (ou à vontade pública) pode ser objecto de apropriação da nação   sobre Portugal e o seu império, e que imagem externa, afi nal, transpareceu em
                                                                    termos políƟ cos e políƟ co-diplomáƟ cos. Entre outros, neste senƟ do, ver O´Con-
              que primeiro delas tomar conta –, defendeu a aquisição não como   nell, Verzijl e Fulton.
              presa mas como território. Assim, o poder de regular o mar seria   8  A Bula Inter Coetera – de 4 de maio de 1493 – estabeleceu a divisória verƟ cal
              coincidente com a sua posse, e esse Ɵ po de imperium era de cariz   limitaƟ va a 100 léguas da ilha mais a Oeste dos Açores, sendo que, em termos his-
                                                                    tóricos, Espanha Ɵ nha acabado de fi nalizar, apenas meses antes, em 1492, a sua
              territorial. Portanto, nos alvores do Séc. XVIII, pode referir-se que   completude territorial na Península. Em Tordesilhas, a 7 de junho de 1494, a sabe-
              era universalmente aceite que todos os Estados costeiros teriam um   doria do Ilustríssimo D. João II deu o seu fruto externo visível em termos políƟ co-di-
              direito natural de propriedade do mar, mas numa área sobre a qual   plomáƟ cos ao defender que se manƟ vesse o traçado verƟ cal que a Bula Papal Ɵ nha
                                                                    defi nido, mas impondo que o meridiano limitaƟ vo dos dois impérios esƟ vesse 370
              exisƟ sse, da parte deles, uma ocupação efecƟ va.     léguas mais para Oeste de Cabo Verde – com muita probabilidade, porque o Rei
               A questão que subsisƟ a era mesmo como defi nir e/ou caracterizar   Português deƟ nha informação de que exisƟ am vastas terras para Sul e mais para
                                                                    Oeste –, fazendo com que os territórios conhecidos dos conƟ nentes africano e asiá-
              essa efecƟ vidade.                                    Ɵ co fi cassem sob a esfera total do domínio português. Em absoluta discordância
               A base de entendimento, conforme nos ensina O´Connell, era a de   com tal decisão e imposição papal, outras nações europeias, como os holandeses,
              que no início do Séc. XVII a ideia difundida era de que a apropria-  ingleses e franceses, desenvolveram as suas próprias estratégias expansionistas e
                                                                    processos de alargamento mercanƟ l maríƟ mo opondo-se frontalmente, territorial e
              ção exclusiva do mar resultava do domínio através do poder naval.   juridicamente, aos dois grandes impérios ibéricos, o que suscitou gravíssimas ques-
              O próprio Grocius defendia – no seu De jure belli ac Pacis – que o   tões – até do foro bélico – com movimentos e acções de assalto e pirataria a navios
                                                                    e territórios portugueses e espanhóis, perpetradas durante os séculos seguintes.
              imperium era exercido através de uma “(…) fl eet staƟ oned in some   9  Em 1608, segundo se crê, será a data mais fi ável.
              part of the sea (…)”, numa premissa em que, mais tarde, foi seguido   10  Que apenas viria e ser publicado em 1872.
              por Loccenius. As guerras navais que foram travadas durante várias   11  Autores como Van Tromp e De Reuter – como avisadamente ensina O´Connell
              décadas desse século bem como os resultados territoriais que delas   – confi rmariam, anos depois, ainda que com uma mais trabalhada base sustenta-
                                                                    dora, a tese inicial de Grocius.
              provieram provariam, contudo, o carácter absolutamente efémero   12  Onde esƟ veram igualmente envolvidos Belharmine, Molina e Suarez.
              de tal Ɵ po de domínio.                               13  Que defendia que “(…) the waters, being indivisible as was the land, fell under
               Não obstante o período pós-Grocius ter sido mais direccionado,   the further injuncƟ on to replenish the earth aŌ er the Flood; so that, God being the
              como acima se referiu, na procura de uma maior precisão na delimi-  Author of nature, and hence as well the Author of the division, as of be parƟ Ɵ oned
                                                                    among men “in properƟ e” (…)”. De notar que, na argumentação, Welwood se refe-
              tação territorial nas áreas de mar mais próximas da costa dos Estados   ria especifi camente às águas costeiras.
              ribeirinhos – e que, nalguns entendimentos, chegariam à defesa de   14  E, consequentemente, a exclusão de todas as outras nações que não exercem tal
              uma distância até 100 milhas da linha de costa! –, a verdade é que   ocupação, e, portanto, não obtêm o beneİ cio de poderes de gozo de direitos e de
                                                                    propriedade sobre o mar.
              foi mesmo na base da anƟ ga noção do poder İ sico efecƟ vo que se


                                                                                                     NOVEMBRO 2020  29
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