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vizinhos, irmãos rivais, e cordiais competidores (os Castelha- Depois de muitas polémicas e de rios de tinta sobre estas maté-
nos). Em primeiro lugar, tentaram fazer-lhes crer que a chegada rias, mesmo os maiores especialistas do passado, como Arman-
ao Oriente (à Índia, a Malaca, à terra dos Chins, ao Japão ou às do Cortesão ou Giuseppe Caraci, sempre tiveram dificuldade em
Molucas), que eles continuavam a tentar realizar pela sua rota compreender e explicar a maneira tão estranha e tão surpreen-
do Ocidente, cada vez com mais insistência e com mais teimosia dente como nesta obra-prima geográfica datada de 1519 conse-
(e já utilizando navegadores portugueses, como João Dias de So- guem coexistir, lado a lado, como se nisso não houvesse qual-
lis em 1508-1509 no Golfo do México e em 1515-1516 no Rio da quer contradição, um curioso e estranhíssimo mapamundo (de
Prata), não somente era muito difícil (o que, desde o tempo de influência ptolomaica…), que serve de frontispício, e uma série
Colombo, eles já vinham dando conta…) mas era mesmo mais do de cartas regionais que, nos seus aspectos geográficos, são sim-
que isso… Era, pura e simplesmente, impossível…! Porque o Novo plesmente típicas cartas-portulano à maneira de Pedro Reinel. E,
Mundo era continental… Porque, no planeta, a terra era grande depois, a posteriori, tais cartas-portulano e tal mapamundo "neo-
de mais (e contínua), e os mares eram pequenos de mais (e fecha- -ptolomizante" passaram por uma estranhíssima intervenção,
dos). Havia sete vezes mais terra do que água… — como diziam uma invulgaríssima intervenção cosmética (!)… quando alguém
o profeta Esdras e o bispo Jacob Perez de Valência… (e repetia cobriu os seus espaços vazios, nos interiores das terras, dos ma-
o Duarte Pacheco Pereira português…) — e portanto não havia res, etc., com deslumbrantes e lindíssimas iluminuras à maneira
maneira de se poder navegar do Ocidente para o Oriente pelo ou- flamenga… Por isso a paradoxal, estranhíssima e deslumbrante
tro lado do mundo… Em segundo lugar, os Portugueses tentaram invulgaridade do "Atlas Miller". Tecnicamente, é a culminação
fazer crer aos seus estimados vizinhos que o caminho para a Índia do braço-de-ferro e do enfrentamento — do confronto e do com-
pela 'Rota do Cabo', a rota portuguesa de África (Sudeste), diplo- promisso… — entre a cartografia empírica e náutica das cartas-
maticamente salvaguardada pelo acordo luso-castelhano previa- -portulano versus as concepções teóricas e culturais do ptolomis-
mente conseguido em 1494 pelo Rei Dom João II em Tordesilhas mo. E, ainda por cima, artisticamente, está decorado como um
(e portanto uma rota não contestável, nem contestada, pelos vi- Livro de Horas iluminado…!
zinhos Castelhanos), era um caminho facílimo… Era curtíssimo… Porquê, num atlas com cartas-portulano regionais tão perfeitas
era pequenino… (pois a própria África era pequenina…!), e a Índia e actualizadas no Atlântico e no Índico (saídas da mão de cartó-
estava logo ali ao virar da esquina do Cabo da Boa Esperança…! grafos profissionais), um mapamundo globalmente tão grosseiro
O assunto estava, portanto, resolvido. A Índia estava em boas e canhestro (obra de ilustrador, e não de cartógrafos…), com essa
mãos. Era portanto melhor que Carlos V e os Castelhanos desis- concepção estranha de uma continentalidade contínua do Novo
tissem… Era melhor continuarem a casar as suas Princesas, umas Mundo e da inventada Terra Austral… e um Extremo Oriente to-
a seguir às outras, com o velho 'Rei da Pimenta' de Portugal… o talmente fantástico, falso e mentiroso (e fechado!)… e as Ilhas
dono da 'Rota do Cabo'… (…)". das Especiarias (as Molucas) bem aferrolhadas, por miríades de
A belíssima carta-portulano regional da Índia e Oceano Índico no "Atlas Miller", certamente devida sobretudos aos dois cartógrafis Reinéis, e depois decorada com
luxuosas iluminuras de António de Holanda (BnF)
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