Page 13 - Revista da Armada
P. 13
REVISTA DA ARMADA | 566
Com os primeiros alvores, consegue-se observar o “tratamento” A VERSÃO “DO OUTRO LADO”
que o mar está a dar à António Enes, que continua a fazer
as pernadas do plano de busca entre o porto de Peniche e o Eis o relato na primeira pessoa, de bordo do NRP António Enes.
Cabo Carvoeiro sobre um mar alteroso. O caturrar do navio Considerando, em primeira instância, a tarefa atribuída –
e a surriada são uma constante; da gente que está do lado de participar no esforço de busca e salvamento de um jovem que
terra – população, jornalistas e entidades oficiais – não restam caíra ao mar na vertente sul do Cabo Carvoeiro – e, em segundo
3
dúvidas sobre o tormento que o navio e a sua guarnição estão lugar, o estado do mar e a sua direção, parecia claro que qualquer
a passar, fixando neles os olhos cada vez que o navio dá mais contributo válido no esforço de busca passaria por concentrar
“um salto”. A espaços é audível um estrondo rouco – é a proa, a nossa ação entre o porto de Peniche e o Cabo Carvoeiro, o
desamparada, que se deixa cair sobre a vaga seguinte. Um desse mais próximo de terra quanto possível. O Capitão do Porto, que
“saltos” faz saltar uma das boiás sinalizadoras da popa do navio coordenava as ações, concordou com a linha de ação proposta.
– a António Enes a esconder-se por detrás das vagas, da surriada Tinha sido interdita a circulação de pessoal no exterior do
e de uma nuvem de fumo vermelho, pareciam efeitos especiais navio, exceção feita às asas da ponte, sendo que mesmo aí a
de um filme. Parafraseando o piloto comandante do EH-101 em permanência no exterior era controlada e nem sempre era
operação naquela noite, é preciso ser-se um alguém especial possível. O mar de sudoeste não dava tréguas, nem havia sinais
para estar ali . Recordo-me de, na altura, ter sido interpelado por que estas fossem concedidas a breve trecho; de facto, sem
4
uma jornalista sobre as condições para efetuar as buscas, à qual tréguas, iniciámos as buscas em rumos leste e oeste, aguentando
terei retorquido: “Repare bem como o mar está a tratar o navio o mar uma e outra vez, sucessivamente na alheta de estibordo
de mais de 1000 toneladas que ali está”. e depois na amura de bombordo, mantendo uma distância de
Esta operação concluir-se-ia na manhã do dia 24, com a recolha 500 jardas a terra, sempre com uma máquina avante devagar e
do corpo do jovem desaparecido da falésia a cerca de mil a outra parada, que apenas arrancava para ajudar na inversão de
metros a leste do local da queda. Durante aquele dia circularam rumo no final de cada pernada. Esse era o momento mais crítico
pela Internet diversas fotografias das operações de busca. do plano de buscas que conduzíamos, pois inevitavelmente
Normalmente nesta situações, as fotografias que merecem maior o navio ficaria atravessado ao mar. Antes de iniciar cada uma
atenção são as de aeronaves; desta vez a António Enes, teve dessas manobras, procurávamos encontrar o espaço entre ondas
também o seu merecido destaque. Todavia, apenas alguns dias que permitisse reduzir o tempo de exposição, para não adicionar
mais tarde tive o privilégio de visualizar, quase em primeira mão, um violento balanço ao já violento arfar e cabeceio, que muitas
a icónica fotografia que foi disponibilizada ao Comando Local da vezes resultava em ainda mais violento caturrar.
Polícia Marítima de Peniche. O pessoal presente na ocasião ficou É impossível ter a plena certeza de qual a onda cavalgada na
sem palavras, ou talvez tenham proferido algumas que aqui não altura em que foi feita a fotografia; contudo lembro-me de, numa
se possam transcrever. Ficou-se também a conhecer o seu autor, altura de acalmia, passe o óbvio exagero, se ter invertido o rumo
o fotógrafo Nelson Vitorino.
13
SETEMBRO / OUTUBRO 2021 13
SETEMBRO / OUTUBRO 2021