Page 14 - Revista da Armada
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REVISTA DA ARMADA | 566
junto ao porto de Peniche e, ao completar a rotação, quase sem convencido que foi essa versão que mais circulou nos primeiros
safanões laterais adicionais, perceber que se aproximava uma tempos e que se tornou a fotografia conhecida… tal a força da
onda pela amura de bombordo. Havia que esperar por ela, como imagem! Mas o que relevou foi, em primeiro lugar, a atribuição
irremediavelmente o navio esperava por todas as restantes, só dos créditos ao autor da fotografia; houve também que clarificar
que esta foi diferente e, à medida que se aproximou do navio, alguns “pormaiores”… é que o navio estava identificado como
cresceu muito mais do que as outras, até ao momento em sendo um outro navio da nossa Marinha e o local como sendo “à
que parecia ser a mãe de todas as anteriores que nos tinham saída do porto da Horta”!
castigado… O navio subiu a onda diminuindo a velocidade até Os navios têm alma, alma que lhes é emprestada pela sua
ficar suspenso, quase levitando, ao que se seguiu um precipício… guarnição, presente e passada. A alma da António Enes, feita
Ainda hoje estou convencido que foi esse o momento em que a de abnegação e vontade de servir, ficou registada naquele
fotografia foi feita! fotograma. Muito obrigado sr. Nélson Vitorino.
Não foi o pior dos momentos que se viveram enquanto se
efetuaram as buscas. Houve uma altura em que um vigia avistou O OLHAR POR DETRÁS DA OBJETIVA
uma pessoa na água; o navio aproximou-se para investigar e
fazer a recuperação se fosse possível, ou dar indicação para Passados dez anos, a memória dos cinco longos dias em que
que outro meio marítimo a fizesse. Acabou por ser um “falso acompanhei as buscas é bem viva…
alarme” - era uma antiga boia de pesca à deriva… Haveria tanto Do mar nada percebo, no entanto, pouco depois da notícia ter
tempo que estava no mar que já tinha limo no topo. Foi uma caído nas redações, rapidamente chego ao Cabo Carvoeiro e
confusão perfeitamente admissível pois o cor-de-laranja era já cedo percebo que tinha uma árdua tarefa pela frente, a fim de
um amarelo esbatido, quase cor de pele, e o limo confundia-se conseguir algumas imagens que pudessem resumir ou transmitir
com cabelo. A questão é que não havia maneira de confirmar o tudo o que ali se passava. Como esperado nestes momentos, tive
que seria aquele esperançoso avistamento a não ser aproximar de tentar trabalhar entre as emoções de gentes que ali afloram
o navio e parar quase por completo a seu lado. Quando tal foi a tentar perceber o que realmente se passara, tendo sempre, no
feito, o navio atravessou-se ao vento e ao mar, como seria de plano de fundo, as condições adversas do mar, da temperatura,
esperar, e no momento em que o vigia gritava: “NÃO É!”, o navio da humidade e do próprio comportamento da luz no local.
foi atingido por três ondas sucessivas no costado. Não recordo Muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, muito por onde
ter sentido o balanço. O estrondo daquelas três “chapadas” de fotografar, sem grandes condições, mesmo com todo o apoio e
água sobrepôs-se a qualquer desvio da vertical do lugar que o respeito de todos os intervenientes nas buscas que muito me
navio possa ter sofrido. ajudaram; o trabalho apresentou-se permanentemente difícil. A
minha atenção ficou inicialmente focada no helicóptero EH-101
Recebemos, mais tarde, a fotografia por intermédio do Capitão da Força Aérea, impossível desviar o olhar da sua magnificência,
do Porto, que tinha sido contactado pelo seu autor, o Sr. Nélson devido à parte da minha vida ligada à aviação! Isto sem nunca
Vitorino. O próprio fotógrafo fez-nos chegar um DVD com a perder o olhar nas buscas apeadas pelas rochas, por parte do
fotografia na capa, contendo todas as fotografias que tinha Bombeiros de Peniche.
feito à António Enes, não só naquela ação, mas também numa No entanto, num dado momento, avisto do nada, entre as
outra ação de busca e salvamento em que o navio tinha estado rochas, a António Enes, em luta perante um mar que não dava
envolvido no ano anterior, em 2009, com condições de mar muito descanso. Como disse anteriormente, do mar nada percebo, mas
mais benévolas. deu para sentir o castigo a que todos a bordo estavam sujeitos.
No verão seguinte, aquando de mais uma comissão na Zona O meu olhar vidrou a partir desse momento, foi uma busca
Marítima dos Açores um militar da guarnição viu a fotografia, incessante por imagens com qualidade, mais que não fossem do
que já conhecia, num café/bar de Ponta Delgada – o “Cantinho ponto vista muito técnico.
dos Anjos”. Ao primeiro relato do achado, sucedeu-se uma Durante cinco dias segui literalmente por terra, a pé ou de carro,
quase romaria àquele lugar… Eu não fui exceção… E ainda bem! até onde era possível fotografar – sempre entre o Porto da Areia
Percebeu-se que impressão não tinha sido feita a partir da Sul e o Cabo Carvoeiro – com condições muito difíceis, sempre
fotografia original, era uma digitalização duma impressão em que com o foco na atenção que a António Enes e os seus homens
o bordo superior da folha estava rasgado. Curiosamente, estou mereciam no momento.
Lage dos Pargos
Prata do Porto
da Areia
14 SETEMBRO / OUTUBRO 2021