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REVISTA DA ARMADA | 573
ALOCUÇÃO DO
Prof. DouTor LOURENÇO MATEUS
‟Alguma coisa temos que fazer — para nos considerarmos dignos durante a qual patentearam ao mundo a valia dos seus trabalhos
daqueles que, —no passado, —nos desbravaram o caminho” científicos, como o préstimo dos instrumentos e métodos ¬por
ambos desenvolvidos para a prática segura da aeronavegação.
Estas palavras — escritas pelo punho do próprio almirante Gago Aeronavegação marítima, que até 1921 (até à conclusão da
Coutinho, a propósito das navegações quinhentistas — foram bem-sucedida viagem aérea entre Lisboa e o Funchal — por
aqui postas em prática, há cem anos, por dois oficiais da Armada, ambos realizada como ensaio para a Travessia aérea do Atlântico
secundados por muitos outros camaradas, cujos nomes jazem na Sul, com Ortins Betencourt e Roger Soubiran integrados na
penumbra da História, mas a quem hoje aqui cabe, também, a equipagem) se revelara tão imprecisa como arriscada.
glória do feito que celebramos. Imprecisa e arriscada porque, nas quatro viagens aéreas de
Feito, que então se traduziu na 1.ª travessia aérea do Atlântico âmbito mundial até então empreendidas por aviadores de diferentes
Sul — nesse tempo, uma extraordinária façanha aeronáutica de nacionalidades, em todas se patenteara, de maneira diversa, mais
repercussão mundial. arrojo do que ciência, e maior emprego de recursos materiais e
Extraordinária, pelas inúmeras dificuldades que apresentava, humanos do que de métodos científicos e resultados precisos. Sendo,
e pelos incontáveis problemas técnicos e científicos que os por isto mesmo — e quando vistas à luz da progressão aeronáutica
comandantes — Sacadura Cabral e Gago Coutinho — tiveram que
resolver antes e durante a viagem. — viagens aéreas tão estéreis como impraticáveis.
Proeza, que não estava ao alcance dos mais ousados, mas dos Progressão aeronáutica, que desde o termo da Grande Guerra,
mais aptos. Pois, nesse tempo de Ares nunca d´antes navegados, elevava cada vez mais as asas dos aviões e lhes alargava o raio de
não bastava ter um avião e ser audaz para voar com precisão ação ¬, vencendo milenares barreiras geográficas e abeirando, do
sobre o mar. Era preciso mais... e muito, muito mais, era aquilo que mesmo horizonte de progresso, povos e culturas.
os dois aviadores da marinha portuguesa em si guardavam. Aptos Horizonte de progresso que o comandante Sacadura Cabral
que se sentiam pela tenacidade que os animava, pela disciplina antevia a seu modo, como JOIA DO OUSAR— que foi segundo
intelectual e física que tinham, pelo rigor que praticavam e Fernando Pessoa — e, sobretudo, como personificação plena da
sobretudo, pelo espírito de sacrifício que estavam habituados a modernidade do primeiro quartel do século XX, onde o dinamismo
devotar à Pátria que serviam. se impunha à indiferença e o desembaraço à lentidão. Porque a
Mas aptos, também, porque eram os mais bem preparados presteza se tornara num modo de vida, e o céu num caminho
para a missão que se propunham realizar. Tanto pelos estudos aberto pela humanidade.
que haviam feito, como pela experiência acumulada, ao longo Caminho inédito este, até então estorvado pela impossibilidade
de anos, como marinheiros e geógrafos militares. Aptidões que física de interpretar a sinalética do firmamento, quando em
lhes permitiram percorrer o ignoto espaço aéreo entre Lisboa e voo, tal como o faziam os mareantes sempre que procuravam
o Rio de Janeiro, tal como haviam percorrido as terras de África, conhecer a sua posição.
sempre com a vida metida em despesa, mas com o menor risco E como novos caminhos exigem tecnologia recente e
possível e a maior margem de sucesso provável. Expedição aérea reconfigurações do pensamento, o comandante Sacadura Cabral
Foto CAB L Elisabete Angelina
24 MAIO 2022