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REVISTA DA ARMADA | 573
avassalou-se sobre os problemas que se impunham para superar
as circunstâncias que os ditavam.
Trabalho que, desde logo, contou com os conhecimentos e
dedicação do seu "caro ex. chefe" — o comandante Carlos
Viegas Gago Coutinho — um geógrafo de mão cheia, diligente
e incansável, que ele bem conhecia, pois com ele trabalhara,
durante alguns anos, em cenários distantes e circunstâncias
inóspitas para o comum dos mortais.
Parceria que não tardou em dar bons frutos, pois o Corrector de
Rumos e a adaptação de um Horizonte Artificial ao sextante são
disso as provas palpáveis. Provas, por detrás das quais se ofusca
um imenso estudo, de rigor científico, que a Aeronáutica logo
tentou conhecer.
Estudo que nasceu da insatisfação do piloto-aviador, do
desejo de saber do geógrafo, e da aptidão dos dois marinheiros
para resolver as contrariedades que impediam a prática da
aeronavegação.
Num par de anos, entre 1919 e 1921, ambos alcançaram os
resultados que lhes permitiram abalançar-se na viagem aérea
Lisboa – Funchal. E logo no ano seguinte, enriquecidos pelo triunfo
alcançado, aqui estavam mais uma vez, nesta doca junto de nós,
que herdara o feliz nome de um convento antigo consagrado a
Nossa Senhora do Bom Sucesso.
Bom sucesso que era aquilo que todos esperavam. Não só os
aviadores e homens da Armada envolvidos na preparação e apoio
da viagem aérea ao Brasil, mas quantos viam nesta empresa o
franquear de um tempo novo para Portugal. Tempo que viraria
definitivamente a página cediça do século XIX, para lançar o país
nos valores e rumos da contemporaneidade.
Contemporaneidade que esta viagem implantava no centro da
aviação mundial, onde só alguns países jogavam as cartadas
decisivas do futuro da aeronáutica.
E foi cientes de tudo isso, que os dois aviadores portugueses
descolaram do Tejo naquela madrugada de 30 de março de Certeza que se confirmou na etapa de 18 de abril de 1922,
1922. Sem gestos efusivos nem grandes despedidas, imersos que decorreu entre o Porto Praia e os minúsculos Penedos de S.
nos seus próprios pensamentos, em comunhão com a máquina Pedro — já território Brasileiro — quando foram percorridas 918
e aureolados pelo arco-íris passageiro com que a meteorologia milhas náuticas em 11 horas e 21 minutos, sem qualquer apoio
os brindou. Para trás, no paredão da doca, deixavam alguns externo, comunicações, ou outros meios de orientação para além
jornalistas e repórteres fotográficos, nomes conhecidos, que daqueles que se achavam a bordo. Momento em que se levou até
fixaram o momento com as palavras e imagens que hoje ao extremo dos limites possíveis — e muito para lá dos aceitáveis
conhecemos. — todo o rigor da aeronavegação executada por Gago Coutinho
Já ao longe, a escassa centena de pessoas que então e da pilotagem realizada por Sacadura Cabral, no termo do qual
testemunhou aquele momento inolvidável, pressentiu que era se atingiu um ponto pré-determinado, onde o navio República os
alguma coisa mais do que a esperança que partia com os dois aguardava.
aviadores. Alguma coisa mais do que uma máquina que se queria Foi isto que maravilhou o mundo daquela época. E foi isto,
levar até ao Brasil — naquele ano em que se cumpria o primeiro também, o que reconciliou momentaneamente os portugueses e
centenário da sua independência. Era... qualquer coisa... que a uniu as Nações Lusíadas em torno do mesmo abraço.
Volvidos dois anos sobre este dia supremo, o mar arrebatou
Razão não podia explicar, mas que o coração dos portugueses não para sempre Sacadura Cabral. Gago Coutinho sobreviveu-lhe
tardou em reconhecer nas páginas da sua História. quase três décadas e meia, tempo bastante para a Aviação mudar
Já no ar, o que então se pretendia pôr à prova, não era a a face do mundo...
resistência e o desempenho da uma aeronave construída em Mas o tempo não conseguiu apagar do mundo a façanha que
Inglaterra, mas a excelência dos conhecimentos científicos e dos inscreveram na História.
instrumentos nacionais que estavam na base da travessia aérea Quando daqui partiram, nessa alvorada de março, Sacadura
do Atlântico Sul. Usando palavras inspiradas pelos escritos de Cabral e Gago Coutinho eram apenas dois homens com uma
Gago Coutinho: — não era o realejo que movia os dois aviadores missão por cumprir. Decorrido um século, neste mesmo lugar da
navais, mas a intenção de comprovar, na prática, o rigor dos seus partida, é a Pátria Reconhecida que os contempla. Porque a Pátria
métodos de aeronavegação. e a Ciência souberam Honrar.
Prova, que Sacadura Cabral e Gago Coutinho não podiam
entregar em mãos alheias — por imperativo intelectual, que
ambos assumiam sem vaidade — pois, se os seus cálculos não Lourenço Henrique Henriques Mateus
estivessem certos, só a eles caberia pagar o preço supremo do Investigador integrado no Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura,
seu erro. Espaço e Memória, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
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