Page 153 - Revista da Armada
P. 153

a Ponte apenas iluminada pelos mos-  Alguns dos náufragos puderam ser reco-
                                            tradores dos instrumentos e, retirado o  lhidos por um Puma da FAP (26) que os
                                            cone de observação, pelo monitor do  depositou no convés de um navio mercante
                                            Radar que ia lambendo a costa num rasto  israelita que se encontrava nas imediações.
                                            de luz e, a cada passagem, avivando ecos  A corveta alcançou o local do naufrágio
                                            dos navios na área. Dentre os vultos, que  em 18 horas depois de vencidas 160 milhas
                                            fomos adivinhando, fomos reconhecendo  com vagas de 6 a 9 m que provocaram
                                            vozes, nomes e depois rostos com quem já  deformações plásticas permanentes a nível
                                            nos cruzáramos, únicos incapazes de iden-  estrutural e iniciou a sua pesquisa na espe-
                                            tificar as pessoas que nos rodeavam. Ao  rança, sem êxito, de salvar outras vidas.
                                            oficial de quarto, tivemos mesmo de per-  Outro arrastão que acorrera ao pedido
                                            guntar o nome.                     de socorro, também espanhol, ainda avis-
                                              Um mar mais vigoroso que rebentava  tou uma bóia que, assinalada, içou e com
                                            quando o navio, adornado a EB, metia a  ela, no chicote duma retenida (27), um
                                            proa na vaga que se erguia, disparando uma  corpo que, autorizado, recolheu para ser
                                            gerbe de espuma, alva na negritude da  entregue às autoridades do seu país.
                                            noite, que, galgando o castelo, ocultando a  Um evento a que ninguém consegue
                                            torre e avançando pelo parque de RAS  ficar indiferente.
                                            (Replenishment At Sea – Reabastecimento  Doutra vez, no termo de uma missão de
                                            no mar) (24), em cachão vinha esmagar-se  rotina, ao regressar ao Funchal para um
                                            contra as vigias, antepara e tecto da Ponte. E  período de descanso, talvez um fim de
                                            o ciclo repetia-se, endireitando-se o navio,  semana, ainda não tinham passado ne-
                                            subindo à crista enquanto ia adornando a  nhuma espia ao cais, quando uma men-
                                            BB, recuperava e de novo descia à cava  sagem  urgente do Comando da Zona
         Recolhendo informações para o «Fishrep».
                                            para, horas a fio, de novo o espectáculo,  Marítima da Madeira chegou informando
         efeito do balanço que no exterior assumia o  nunca igualável, se repetir.  que um navio graneleiro norueguês, a
         carácter de um espectáculo em que, sob o  Sem folga, o marinheiro do leme lá se  260 milhas, pedia socorro devido a uma
         portentoso cenário da natureza, não há  desembaraçava para manter o rumo enquan-  intoxicação.
         senão espectadores actores.        to alguém mais afoito gracejava aliviando o  Recebidas do Hospital garrafas portáteis
           Porque no mar, fins de semana, folgas  ambiente que se quer de eficiência e não de  de oxigénio, imediatamente largaram ao
         ou descanso são meros eufemismos pois  tradicional quartel ou repartição.  encontro do navio cujo armador, capitão e
         inexoravelmente sujeitos aos caprichos do  Nas cobertas, nos camarotes, nos beliches  guarnição eram afinal polacos com quem
         tempo, o mar vai ensinando cada um a  o sono a que cada um tem direito não era  se entenderam em inglês.
         silenciar as suas penas, a superar-se e a  certamente o que os justos, em terra, conhe-  Numa inspecção aos porões, um ter-
         entreajudar-se como recorda no belíssimo  cem. Mas não só estarão despertos todos  os  ceiro tripulante ao ver caírem redondos
         louvor o Ministro do Exército que trocou  outros que nas entranhas do navio zelam  dois marinheiros à sua frente alertou o
         o Terreiro do Paço pelo Deserto de  pela nave. Na cozinha e nas copas a pala-  capitão e apesar de os terem retirado do
         Moçâmedes e que na Môngua (20) se ren-  menta do jantar tem de ser lavada, limpa,  local, quando a corveta chegou já esta-
         deu à «têmpera» dos marinheiros que  arrumada e peada e, adivinhamos, o cozi-  vam mortos. Sob a frustração da espe-
         sabiam que o «Comando nada podia   nheiro antecipando o pequeno almoço para  rança perdida e do empenho desenvolvi-
         fazer que modificasse de pronto a situa-  a manhã que despertará com 70 (25)estôma-  do, comboiaram o navio para o Funchal a
         ção». Pereira d’Eça, o Africano (21).  gos revolvidos e o padeiro a preparar o pão  fim de se proceder a requisitos legais e
           Mas situações muito piores podem  que saboreámos e todos esperam encontrar  dar sepultura condigna, na sua Pátria, aos
         ocorrer e as refeições podem ficar reduzi-  ao lado do café e do leite e do suplemento  dois sinistrados.
         das a comidas frias, normalmente enlata-  que serão ... ovos mexidos.   “Pokój  ich  duszom,  marynarzy ! ” (28)
         dos, porém, desta vez ainda tivemos o
         privilégio de comer uma saborosa sopa
         sem se ter de equilibrar o prato na mão e
         de compensar com o corpo os balanços,
         contrabalanços e o arfar do assento das
         cadeiras, fixas ao pavimento, e que, como
         terráqueos, temos, subconscientemente,
         por referência ... fiável.
           Desta feita um substancial arroz de frango
         e um doce a rematar, serviram de pano de
         fundo a um agradável convívio e permitiu-
         -nos compreender a oportunidade de no fim
         do almoço se terem os oficiais dirigido ao
         refeitório das praças e aí, com toda a
         guarnição, saudar com um vinho do Porto, o
         primeiro, o único, imagine-se, avô a bordo.  Luzes reduzidas.
         Claro que às palavras de circunstância foi
         «voluntariamente» associado o «Capitão  Numa circunstância semelhante, em mis-  Mas muitos têm sido também os casos
         (22)» do navio, um jovem voluntário no seu  são SAR ainda recente, um arrastão espa-  com um final feliz, pois só quem não anda
         quarto mês de marinha, a que o feliz con-  nhol surpreendido por uma vaga alterosa,  no mar é que não imagina o que será ser
         templado não deixou de responder...  meteu água e adormecendo foi-se virando,  náufrago ou sentir-se desamparado. No meio
                                            permitindo apenas que um SOS, com a sua  dum oceano, tantas vezes à vista de alguém
           Rendido o Quarto às 19h00 (23), fomos  posição, fosse lançado e que a tripulação se  que desesperadamente o procura ou mais
         encontrar, em nome de uma melhor visão,  atirasse ao mar.             aflitivo, à vista duma costa que ...

                                                                                         REVISTA DA ARMADA • MAIO 2001  7
   148   149   150   151   152   153   154   155   156   157   158