Page 158 - Revista da Armada
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ENTREVISTA
Um Médico a bordo
Um Médico a bordo
do “Gil Eannes”
do “Gil Eannes”
Aguardava-nos o Sr. CALM
Gualter Marques na «Sala dos
Almirantes» onde, antes de
mais, nos surpreendeu pela
sua vivacidade e desen-
voltura. Não nos foi, por isso,
difícil imaginar o irrequieto
estudante de Coimbra a con-
quistar, com elevadíssima
primeira classificação, uma
carreira de Médico Naval, em
1940. Entrevistando o Dr. Gualter Marques… um jovem de 87 anos !
, muito menos, a agarrar o desafio de amador que como comandante se afirmara, à tavam pela TSF e, pior, por interposta pessoa, o
embarcar no «Gil Eannes», rumo à Terra imagem do CFRAG Matos Moreira, «um oficial capitão ou o imediato, o que muito dificultava
E Nova e, para acompanhar a migração do completo, de grande resistência física e de créditos os diagnósticos que, como o exercício, tocava
bacalhau, à Groenlândia, em missão deveras sólidamente estabelecidos» nele aliados a um fino todas as especialidades, excepto, bem entendi-
espinhosa; numerosa a frota, penosa a faina, trato, humanismo e ponderação reafirmados por do, as do sexo feminino. O sumário equipamen-
hostil o tempo e implacável a ... guerra. entre icebergues, buzinas de nevoeiro e violentos to laboratorial de análises e um aparelho de
temporais. Mas sobretudo porque era amado Raios X, que fizera embarcar, eram então utilíssi-
Revista da Armada – Sr. Doutor, como foi como ... olhe! Como «um Pai»! mos requintes.
parar ao «Gil Eannes»?
R.A.: Como foram os contactos com a frota? R.A.: Viveu o Sr. Doutor algum momento tão
Dr. Gualter Marques – O Director do emocionante como, em 1950, o do marinheiro
Hospital de Marinha, entendeu ser a pessoa Dr. G.M.: Largámos de Lisboa a 24 de Junho da «Sagres» que, com toda a solidariedade do
indicada. Pelos meus interesses profissionais e rumo a Nova Iorque que, apesar das maravilhas «Dão», salvou ao largo dos Açores?
pelo meu espírito aventureiro. de engenharia e de senso prático, foi cidade que
não nos cativou. Os nossos únicos passageiros, o Dr. G.M.: Sim, com final feliz e ... também
R.A.: Num momento muito especial ... novo cônsul em S. João da Terra Nova e a não. Como os bacalhoeiros tinham largado em
família, recentemente evacuados de Murmansk, Abril e Maio os problemas acumularam-se. Um
Dr. G.M.: No auge da Guerra no Mar. Os tor- de avião, ali nos precederam. veterano do «Delãis» apareceu em estado de
pedeamentos alemães aos comboios de Murmansk Daí, depois de Norfolk e New Port, para coma hipotérmico no dóri em que o tivemos de
atrasaram a nossa partida para esse duplo teatro de carvão, a 27 de Julho chegámos junto dos içar. Chocados com «os maus tratos» a que o
pesca e de ... «caça». Em 1942, em vésperas de par- primeiros três lugres da Terra Nova. Na sujeitei, quando o viram balbuciar as primeiras
tida, um comunicado alemão avisava; quem aí Groenlândia os pescadores, ao saberem que o palavras passaram a chamar-lhe «ressuscitado».
navegar, «depois de 26 de Junho, ... expõe-se à Cte José Martins continuava presente naqueles O curioso é que o próprio quando acordou jul-
destruição». Lá fomos, cantando e rindo... mares acolheram-nos aos vivas, atirando os gava que estava no ... Céu.
bonés e as roupas ao ar, com um entusiasmo
R.A.: Quem o acompanhou, Senhor Doutor? comovente. Está a ver? R.A.: Logo no Céu ...
Dr. G.M.: O navio, então, era civil. Da tripu- R.A.: Tiro as necessárias ilações ... Dr. G.M.: Mas em 43 lugres e 3 arrastões nem
lação recordo o Capitão Silva, o Imediato todos os casos foram tão felizes. Não tendo con-
Passos, três Pilotos, um deles Cabo Verdeano, o Dr. G.M.: A contrastar, os dóris que nos seguido, à vista de terra, vencer as hemóptises
Veterinário, Dr. Botelho, e o Capelão, Padre chegavam com os doentes. Uns ficavam hospi- do contra-mestre Bilela, do «Aviz», nossa única
Encarnação, além de um punhado de bravos talizados, outros regressavam devidamente me- perda, assegurei-lhe uma câmara ardente à proa
homens do mar. Da Armada o 2TEN AN Carlos dicados e muitas vezes eram os capitães e pilo- e, em terra, uma sepultura. Em Egesdeminde a
Souto, eu próprio, então 2TEN MN, e o CFRAG tos que faziam de ...enfermeiros. comunidade esquimó protestante, num inespe-
na reserva António José Martins, nas funções de Os que baixavam tomavam um banho e cor- rado gesto de puro ecumenismo, associou-se ao
Capitão do Porto da Frota Bacalhoeira, tados os cabelos e a barba recolhiam aos alvos funeral deste bravo. Flores que nunca em tal
incumbido de zelar pela segurança dos navios e lençóis duma enfermaria que, parecendo-lhes terra vira, foram depositadas na sua sepultura
pela disciplina dos tripulantes. um luxo asiático, trazia aos seus endurecidos pelas gentis mãos femininas que, com mil cuida-
rostos uma alegria feliz. dos, as cultivaram, sublinhando as tocantes
R.A.: Uma pessoa muito especial ... Os cuidados dos dois enfermeiros civis e os palavras, mesmo para estrangeiros, do Capelão e
meus distribuíam-se por uma população dispersa do Cte José Martins.
Dr. G.M.: Sim. Um reputadíssimo fotógrafo de 3000 homens que muitas vezes me consul- No dia seguinte, apesar do mau tempo, fomos ✎
12 MAIO 2001 • REVISTA DA ARMADA